Crítica | O Acontecimento

Tudo o que a mulher carrega sozinha

Baseado no romance autobiográfico de Annie Ernaux, “O Acontecimento” venceu o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2021. Apesar dos eventos do filme acontecer nos anos 60, o que vemos aqui é uma retrato doloroso e, infelizmente, ainda muito atual sobre aborto. Em uma época em que o procedimento não era legalizado na França, uma jovem se vê diante de uma jornada solitária após uma gravidez indesejada.

Annie é uma garota com um futuro promissor, mas sua vida se transforma quando recebe a notícia de que está grávida. Sem coragem de se abrir para a família, ela é julgada e menosprezada pelas amigas quando decide não ter o filho, além de nunca conseguir uma orientação devida nos consultórios médicos, onde apenas homens conservadores a examinam. Annie é atacada de todas as formas possíveis em um tempo em que informações são escassas e não há lugar para pedir socorro. “Não há opção, tem que aceitar”. A frase dita por um especialista ecoa em nós como um soco. Dói vê-la desprotegida e sem rumo.

Dirigido por Audrey Diwan, a câmera não desgruda da protagonista e a acompanhamos extremamente de perto nesse caminho torturante. O formato quadrado limita nossa visão e traz uma sensação claustrofóbica ainda maior. É sufocante e soa como um verdadeiro thriller psicológico, onde a personagem precisa enfrentar dores físicas e emocionais constantes. O uso de estampas floridas e cores como o azul turquesa – presente em todas cenas – que imprimem um sentido de paz e divindade, contrastam com essa atmosfera aterrorizante do qual Annie enfrenta. É ela precisando manter uma postura e ser socialmente aceita, enquanto que por dentro, está completamente dilacerada.

“O Acontecimento” traz ainda uma grande atuação de Anamaria Vartolomei, que carrega em seus olhares toda essa dor silenciosa do qual Annie não pode expressar. É um peso grande demais que a protagonista carrega sozinha. Que as mulheres carregam. Não poder escolher pelo próprio corpo e não poder ter voz para decidir por si mesma é o verdadeiro crime. O filme entende o quão aterrorizante e solitário é estar nessa posição, encerrando-se com grande impacto e uma sensação estranha diante da calmaria da “vida que segue”. Nos faz pensar o quão atual ainda são seus discursos e quantas histórias parecidas como essa ainda existem ao nosso redor e nem nos damos conta.

NOTA: 9

País de origem: França
Ano: 2021
Título original: L’évènement
Duração: 100 minutos
Disponível: HBO Max
Diretor: Audrey Diwan
Roteiro: Audrey Diwan, Marcia Romano
Elenco: Anamaria Vartolomei, Pio Marmaï, Sandrine Bonnaire, Louise Orry-Diquero

Crítica: Matrix Resurrections

Uma aula de como não retomar uma franquia de sucesso

Passei por uma maratona de “Matrix” antes de chegar nesse quarto capítulo, reassistindo os outros três que tão pouco recordava. O primeiro continua excelente, de fato, um marco. O segundo, assim como o terceiro também, traz grandes ideias jogadas em um roteiro sem muita intenção de desenvolvê-las, revelando, infelizmente, uma filosofia que soa profunda, mas é apenas vazia e preguiçosa.

É assim que, quase vinte anos depois, a criadora Lana Wachowski, agora sem Lilly, retorna ao universo por alguma razão que em duas horas não consegue justificar. E mais uma vez, sua obra pretende ser profunda com seus diálogos extremamente expositivos, quando, na verdade, é só algo tolo e descartável. O filme inteiro é um personagem precisando descrever para outro o que está acontecendo. A aventura nunca flui, apenas é explicada. Parece ter sido escrita por um adolescente fanfiqueiro, que não sabia se faria uma homenagem, um reboot ou só uma paródia mesmo. Uma forma vergonhosa de revisitar algo que tanta gente respeita e admira.

“Pegaram a sua história, algo que significava tanto para as pessoas como eu e transformaram em algo trivial (…) Onde mais enterrar a verdade senão dentro de algo tão comum como um videogame.” A roteirista, através da metalinguagem, busca criticar os grandes estúdios do cinema e essa facilidade que eles possuem em destruir algo com significado apenas para ter uma franquia lucrativa. O discurso de Lana é ousado e afrontoso sim, mas infelizmente se torna patético quando decide ilustrá-lo com uma produção tão genérica. Bater de frente com o cinema blockbuster Hollywoodiano e sua trivialidade entregando um filme trivial me soa apenas preguiçoso. Ela consegue o feito de transformar sua bela criação em uma longa piada de mal gosto e extremamente desrespeitosa com aqueles que admiram a saga. É esperto não entregar o que os fãs querem, mas é decepcionante quando a obra se camufla dentro daquilo que pretende criticar.

Para piorar a situação, o texto aqui é fraquíssimo, deixando o elenco pouco à vontade. Entendo que Keanu Reeves é uma persona adorável, mas que brochante é assistir algo com alguém que nitidamente não tem a menor vontade de estar ali. Com soluções tolas, “Matrix Resurrections” mais parece um episódio ruim de Sense8 (ou uma desculpa para juntar o elenco de novo). O belo visual até desperta nossa atenção, mas aí perde novamente com suas sequências pouco inspiradas de ação e confronto corporal, que nada nos lembra a agilidade presente nos capítulos anteriores.

Houve, no cinema recente, uma saturada necessidade de revisitar franquias de sucesso. Poucas vezes, porém, me vi diante de um retorno tão podre como este. Lana precisava ter se esforçado um pouco mais para fazer um filme ruim. Esse está abaixo disso. Está no nível insulto mesmo.

NOTA: 4,0

País de origem: EUA
Ano: 2021
Duração: 148 minutos
Disponível: HBO Max
Diretor: Lana Wachowski
Roteiro: Lana Wachowski
Elenco: Keanu Reeves, Carrie-Anne Moss, Jonathan Groff, Yahya Abdul-Mateen II, Jessica Henwick, Neil Patrick Harris, Jada Pinkett Smith, Priyanka Chopra Jonas, Lambert Wilson

Crítica | King Richard: Criando Campeãs

O homem que projetou sonhos

Existe algo de atraente em filmes de esporte e essas tramas inspiradoras de superação e de vitória. “King Richard” busca trazer lições valiosas ao narrar a história real de ascensão de duas das maiores tenistas do mundo, Venus e Serena Williams. A questão aqui é que a obra não se importa muito por elas e sim por aquele que as projetou, o pai Richard Williams, interpretado por Will Smith. Também mentor e treinador, ele usa de métodos próprios e nada convencionais para tornar suas filhas campeãs.

O roteiro aproveita esse cenário para trazer boas mensagens de dedicação, persistência e emociona nesse relato de um pai fazendo o impossível por trazer um futuro digno para suas filhas. O sucesso delas é a quebra de uma barreira solidificada nessa sociedade que sempre fechou portas para jovens negros. Torcemos por essa vitória porque ela é a ruptura de um sistema cruel.

Antes mesmo de Venus e Serena nascerem, Richard já havia traçado o rumo de sucesso das duas. Nada pode estragar esse seu plano. Claro que tudo isso vem recheado de frases de efeito e um papo entediante de coach, viés que o próprio Will Smith sempre adorou abraçar no cinema. É bastante incômodo essa romantização que “King Richard” faz desse pai controlador, que pouco ouve sua esposa e que pouco se importou com os sonhos reais das filhas. Elas são o projeto dele e o filme, em nenhum momento, se preocupa em tornar Serena e Venus em personagens. Elas não possuem voz e nem mesmo desejos próprios. Claro que as garotas nunca parecem descontentes com o rumo que seguem, pelo contrário, mas teria sido ótimo entender mais o lado delas e não tanto do homem que construiu os sonhos e ditou todas as vontades que ambas precisariam ter.

Apesar desse desconforto causado por essa premissa, o diretor Reinaldo Marcus Green entrega um trabalho muito seguro e uma atmosfera que seduz. Além de Will Smith, que está ótimo em cena, o filme ainda nos brinda com boas atuações dos coadjuvantes Jon Bernthal e da revelação Aunjanue Ellis, que brilha e merecia mais diálogos. A trilha sonora composta por Kris Bowers é outro ponto alto da produção. É bela e engrandece cada momento.

“King Richard” falha nessa romantização do pai controlador e por nunca dar voz à quem realmente gostaríamos de ouvir. Ainda assim, é uma obra bastante correta em sua forma, muito bem conduzida pelo diretor, o que a torna uma produção envolvente e facilmente recomendável.

NOTA: 7,0

País de origem: EUA
Ano: 2021
Título original: King Richard
Duração: 138 minutos
Disponível: HBO Max
Diretor: Reinaldo Marcus Green
Roteiro: Zach Baylin
Elenco: Will Smith, Aunjanue Ellis, Jon Bernthal, Saniyya Sidney, Demi Singleton, Tony Goldwyn

Crítica: Coração Errante

Paixão e fúria

O cinema argentino, por vezes, nos brinda com pérolas como esta. Fui sem saber do que se tratava e terminei de vê-la inundado de muitos sentimentos. “Coração Errante” é aquele filme simples, genuíno, mas que fala inteiramente com coração e nos alcança. Este é apenas o primeiro longa-metragem escrito e dirigido por Leonardo Brzezicki, que já entrega algo notável e imensamente humano.

Aqui, o astro Leonardo Sbaraglia dá vida à Santiago, pai de uma adolescente com quem tem uma relação conturbada. Adentramos em sua vida em um momento de grande angústia, quando ele se lança à uma crise emocional fortíssima, principalmente pelo recente rompimento com Luis, alguém que amava profundamente. O vemos, então, lutando para se manter firme, enquanto se perde em outros amores, buscando se conectar, ser preenchido.

Na primeira cena de “Coração Errante”, um amigo embriagado de Santiago diz que deseja amar, mas não pode. Quer amar, mas não sabe. Essa afirmação melancólica diz muito sobre a jornada do protagonista, que se entrega verdadeiramente aos outros mas sempre está só. Ele é o passageiro que se lança a um trem em alta velocidade, experimentando de tudo um pouco, sem nunca ter alguém que o espera ao fim. Santiago é um misto de medo e excitação, de paixão e loucura. É responsável por diversos equívocos e por muitas vezes opta pelas piores decisões, como quando desconta suas frustrações em sexo vazio e compras. É um pessoa intensa, impulsiva mas que está sempre agindo pelo coração, mesmo quando erra.

Existe poesia no texto de “Coração Errante”, que flui com uma naturalidade absurda. É um recorte sensível de uma vida, que durante seus belos minutos, nos conectamos a ela e a todas as suas imperfeições. Uma obra que fala de tesão, solidão e esse nosso constante medo da rejeição. Somos o fruto de muitas desilusões e ao expor isso pelo olhar de um homem homossexual ganha tons ainda mais profundos. É incrível quando o filme expõe essas nossas inseguranças e esse medo de envelhecer e não se estabelecer, de ter tanto o que dizer e não ter a quem ouvir. Santiago está sempre rompendo, desfazendo laços, mas sempre na espera, na expectativa de se manter.

Leonardo Sbaraglia entrega aqui uma das minhas atuações favoritas do ano. Ele incorpora por completo o personagem, comovendo tamanha honestidade que imprime em cada cena. Um estudo de personagem interessante e muito bem conduzido pelo roteiro. Santiago nos causa desconforto, riso nervoso, mas também nos faz sofrer ao seu lado, sentir essa paixão que vibra na forma como ele conduz sua vida. “Coração Errante” é uma obra tocante, sedutora e extremamente prazerosa de assistir. Aquele filme que eu adoraria abraçar, se eu pudesse.

NOTA: 9

País de origem: Argentina / Brasil / Espanha / Holanda / Chile
Ano: 2021

Título original: Errante Corazón
Duração: 105 minutos

Disponível: HBO Max
Diretor: Leonardo Brzezicki
Roteiro: Leonardo Brzezicki
Elenco: Leonardo Sbaraglia, Miranda de la Serna, Iván González, Thalita Carauta, Tuca Andrada

Crítica: Caminhos da Memória

O passado que assombramos

Escrito e dirigido por Lisa Joy, roteirista da série “Westworld“, o filme segue a mesma linha do show da HBO, tão ambicioso quanto vazio. É aquele prato lindo no cardápio, feito com os ingredientes mais saborosos, mas frio e sem sabor quando chega à mesa. Aqui, ela reúne todos os elementos de um ótimo blockbuster: elenco de peso, premissa intrigante e uma belíssima ambientação. Falta roteiro para dar vida a essa super produção que, infelizmente, não tem fôlego para nos carregar e morre minutos depois que começa.

Em um futuro distópico, Miami vive quase que submersa devido ao aquecimento global. Em um cenário de caos e pessimismo, o investigador Nick (Hugh Jackman), ganha a vida com seu lucrativo estabelecimento: possui uma tecnologia que permite que pessoas retornem ao passado, revivendo suas lembranças favoritas. Porém, ele acaba se apaixonando por uma de suas clientes que, misteriosamente, desaparece. É então que ele mergulha em suas próprias memórias e em uma rede de intrigas que podem revelar as razões do sumiço de sua amada.

Nada é mais viciante que o passado. É com esse pensamento que o nosso protagonista tenta recuperar a felicidade dos outros. É triste, porém, quando o próprio filme não entende a força dessa premissa, onde o roteiro jamais consegue explorar esse real potencial, desperdiçando tudo em prol de um suspense investigativo simplório, que circula repetidamente pelas mesmas ideias. A história de amor, base de toda a narrativa, não convence. Hugh Jackman e Rebecca Ferguson funcionam juntos e é uma química que vem desde “O Rei do Show”, mas sem um bom texto que nos faça acreditar, é difícil funcionar. Tudo é desenhado por uma plasticidade fake de comercial de perfume e as frases de efeito o tornam ainda mais enfadonho e tolo.

Há fortes referências de “Blade Runner” aqui, mas mesmo bebendo das fontes certas o produto não alavanca. É fato que o cinema atual carece dessas ideias originais e, por isso, é uma pena que tenham desperdiçado tanta coisa aqui. “Caminhos da Memória” tinha potencial mas insiste em seguir os piores rumos possíveis. Ao menos, ao fim, traz uma reflexão interessante sobre como nosso passado está intacto e somos nós, aqui no presente, que o assombramos.

NOTA: 5 / 10

País de origem: EUA
Ano: 2021

Título original: Reminiscence
Duração: 116 minutos

Disponível: HBO Max
Diretor: Lisa Joy
Roteiro: Lisa Joy
Elenco: Hugh Jackman, Rebecca Ferguson
, Thandiwe Newton

Crítica: A Vida Extraordinária de David Copperfield

O observador de histórias

Com grande elenco e uma narrativa dinâmica, “A Vida Extraordinária de David Copperfield” vem com o intuito de trazer uma nova roupagem a um dos maiores clássicos do autor britânico Charles Dickens. A adaptação, que vem recheada de humor e personagens caricatos, também pretende ser uma homenagem ao romancista, logo que a jornada deste excêntrico protagonista tem tons autobiográficos.

Dev Patel é quem dá vida a David Copperfield. É um personagem clássico, que enfrenta diversas fases na vida, desde maus tratos por seu padrasto, exploração no trabalho, até enfrentar dificuldades quando adulto. É ele se encontrando nesse mundo, buscando sua própria voz, sua identidade e seu talento como contador de histórias. Copperfield encontrará diversas pessoas em seu caminho, cada uma com suas características peculiares do qual ele observa com muita atenção. Tudo isso é ilustrado com um belíssimo visual, que espanta pela riqueza de cores e detalhes. Os figurinos e cenários são de uma beleza hipnotizante.

Encontramos aqui uma obra ambiciosa, que pretende ser épica, mas infelizmente não tem força. Seu fôlego se desgasta rápido e logo nos vemos presos a inúmeras situações do qual não sentimos nenhuma conexão ou interesse. Armando Iannucci, criador e roteirista da série Veep, parecia a escolha certa para o projeto, mas ainda que ele capriche na direção, seu roteiro não tem vida. Ele acelera o passo para dar tempo de contar tudo o que pretende, mas esses tantos personagens que nos apresenta dentro desse universo tão lúdico, pouco desperta afeição ou algum tipo de sentimento. Vemos belas palavras condensadas em um texto que pouco diz.

Dev Patel é um ótimo ator e aqui se esforça, apesar de ser um protagonista confuso e não muito interessante. Ele divide a cena com um grandioso elenco que faz a obra valer mais a pena. Tilda Swinton está impecável. Temos ainda boas presenças de Hugh Laurie, Peter Capaldi e da carismática revelação de Rosalind Eleazar.

“A Vida Extraordinária de David Copperfield” falha nesta missão de modernizar a literatura de Charles Dickens. Acerta na produção, que é deslumbrante, mas peca na construção de seu universo e nesses tantos personagens que tão pouco nos importamos.

NOTA: 6,0

País de origem: EUA, Reino Unido, Irlanda do Norte
Ano: 2019

Título original: The Personal History of David Copperfield
Duração: 119 minutos

Disponível: HBO Max
Diretor: Armando Iannucci
Roteiro: Armando Iannucci, Simon Blackwell
Elenco: Dev Patel, Hugh Laurie, Peter Capaldi, Tilda Swinton, Morfydd Clark

Crítica: A Subida

Os tropeços de uma longa caminhada

Baseado no curta-metragem de mesmo nome, “The Climb” traz novamente a direção e roteiro de Michael Angelo Covino, que aqui também protagoniza. O filme, que venceu a Mostra “Um Certo Olhar” em Cannes de 2019, é uma grata surpresa e diverte ao falar sobre uma inusitada amizade ao longo de vários anos. Existe autenticidade nessa jornada e brilhantismo ao conduzir a evolução desses personagens tão humanos e tão aptos a cometerem os piores erros.

A obra inicia-se registrando a subida de dois amigos ciclistas em uma pista íngreme. É ali que Mike (Michael Angelo Covino) revela a seu melhor amigo, Kyle (Kyle Marvin), que dormiu com sua esposa, dias antes do casamento acontecer. O que poderia ser o momento de separação, é quando o elo se torna ainda mais forte. É uma relação tóxica, narrada por péssimas decisões. Separado por capítulos, o longa nos lança a diversas fases da vida de cada um deles, onde enfrentam o luto, novas mudanças, o envelhecimento. E eles odeiam a si próprios a ponto de nunca se abandonarem.

A subida inicial é filmada em um plano sequência bem arquitetado, onde a fluidez se mantém ao longo da obra e a câmera nunca perde esse ritmo da escalada. Sempre em movimento, adentrando por seus cenários, invadindo a intimidade de seus personagens e tudo aquilo que ninguém se sentiria à vontade em revelar. A produção transmite naturalidade ao falar sobre os tropeços da vida e essas conexões inesperadas que construímos ao longo do caminho. Até mesmo as transformações físicas dos atores em cena, ajudam nessa imersão.

Uma comédia brilhante, incrivelmente bem escrita, colocando em evidência o talento de Michael Angelo Covino. Ele aqui também entrega sequências muito bem filmadas, que possuem uma certa complexidade apesar do baixo orçamento. É um debute potente em um longa-metragem. “A Subida” causa um riso pelo desconforto e uma dúvida inquietante em nós assim que termina. Simples, mas surpreendentemente genial.

NOTA: 8,5

País de origem: EUA
Ano: 2019

Título original: The Climb
Duração: 94 minutos

Disponível: HBO Max
Diretor: Michael Angelo Covino
Roteiro: Michael Angelo Covino
Elenco: Michael Angelo Covino, Kyle Marvin, Gayle Rankin

Crítica: Objetos Cortantes

As consequências do corte

Por muito tempo as pessoas me recomendaram esta minissérie, mas sempre deixei para depois. Apesar de ter Amy Adams no elenco, nada mais me atraia muito. Agora presente no catálogo da HBO Max, resolvi dar uma chance. E foi a melhor coisa que fiz.

“Objetos Cortantes” começa não muito bem, preciso ressaltar. Os três primeiros episódios apresentam o universo de forma entediante. A jornalista Camille, interpretada brilhantemente por Amy Adams, volta para sua cidade Natal para escrever sobre o assassinato de uma adolescente. Nada disso é novidade e a produção não se esforça em tornar muito atrativo também. Em sua estadia, passa a dormir na antiga casa, precisando conviver com sua família, do qual não guarda nada além de ressentimentos. São relações tóxicas e que causam um constante desconforto. Ali, naquela pequena cidade, ela é assombrada por suas lembranças e dominada por seus vícios autodestrutivos.

A grande genialidade da minissérie é que toda essa introdução nos despista do que realmente pretende falar. Todos os indícios estão ali, só estamos olhando para os detalhes errados. Baseado no livro de Gillian Flynn, “Objetos Cortantes” vai seguindo um rumo interessantíssimo. Pausado, silencioso, mas imensamente intrigante. Com o decorrer dos episódios, o show ganha vida e nos vemos completamente imersos nesse seu universo, tentando entender esses fragmentos do passado da protagonista e tudo o que ela enfrentou para chegar aqui. São histórias de abusos, controle, violência e luto. Nem tudo é tão claro, mas a grandeza da interpretação de Amy Adams é justamente essa. Seu olhar e sua postura dizem muito e nos carrega ao seu lado.

O elenco ainda traz ótimas atuações da veterana Patricia Clarkson e a grata revelação de Eliza Scanlen. A jovem atriz impressiona, entregando uma coadjuvante de peso e de grande complexidade. A direção fica por conta de Jean-Marc Vallée que, por vezes, peca nessa montagem estranhamente picotada que traz de “Big Little Lies”, mas também encanta e nos seduz pela forma como vai guiando o show. A direção de arte também se destaca, onde a casa onde os grandes conflitos acontecem é abarrotada, cercada de objetos de outro tempo, que apesar de preencherem os espaços, não possuem vida. Seus florais são mórbidos, fúnebres, ilustrando com perfeição o estado em que as personagens se encontram.

Ao decorrer dos episódios, a minissérie vai deixando rastros sobre suas reais intenções e quando a verdade nos alcança compreendemos o brilhantismo do roteiro, que não entrega nada de forma óbvia. “Objetos Cortantes” termina em seu ápice. A virada final surpreende, se encerrando de forma espetacular.

A cidade está matando as garotas. É neste cenário desesperançoso que a protagonista se vê obrigada a confrontar toda a sua dor. Essa dor que ela precisa exteriorizar, carregar na pele, sentindo a punição por ainda estar viva. Essas três mulheres que se encontram, de gerações distintas, também possuem definições distorcidas do que é machucar. E nenhuma delas sabe medir as consequências de um corte.

NOTA: 9,0

País de origem: EUA
Ano: 2018

Disponível: HBO Max
Duração: 429 minutos / 8 episódios
Diretor: Jean-Marc Vallée
Roteiro: Alex Metcalf, Marti Noxon
Elenco: Amy Adams, Chris Messina, Eliza Scanlen, Patricia Clarkson, Henry Czerny

Crítica: O Esquadrão Suicida

o retorno triunfante

O ano é 2016, ao som de Queen, um trailer ambicioso surgia e o filme se tornava uma grande promessa. O tombo veio e “Esquadrão Suicida” foi esmagadoramente criticado pelo público e crítica. Logo, uma sequência parecia o caminho mais tolo a ser seguido. É então que o projeto cai nas mãos certas e James Gunn, ainda que traga alguns personagens de volta, reinicia com vigor a franquia, entregando um produto autêntico e extremamente eficiente.

Autenticidade é uma palavra rara a ser usada quando falamos do universo dos heróis, em geral, no cinema. Quando se encontra a fórmula do sucesso, não há criador que possa interferir. É assim que assistir a um filme claramente assinado por um diretor traz frescor, um respiro necessário. “O Esquadrão Suicida” não é apenas muito prazeroso de assistir como também comprova a esperteza de James Gunn. Traz estilo sim, mas o grande acerto aqui se encontra no texto, que sabe dosar o humor, a dramaticidade e, principalmente, sabe como valorizar seus bons personagens. Cada um tem seu momento de glória ali e, como consequência, muito diferente do que havia sido feito antes, nos afeiçoamos a cada um deles, vibramos pela jornada, pelas conquistas.

Já nos primeiros minutos, temos uma virada genial na narrativa. E, felizmente, o roteiro é esperto o bastante para manter esse fator surpresa até o fim. A obra tem uma premissa extremamente simples, onde os nossos supervilões são recrutados pela Força Tarefa X que, para uma redução de sentença, aceitam salvar o mundo de uma grande ameaça e destruir um projeto militar. A grande graça aqui é ver esses personagens desajustados se unindo por um único objetivo. Há sintonia entre todos eles e o elenco se mostra muito à vontade. Margot Robbie enche a tela com seu brilho e Idris Elba, John Cena e a revelação Daniela Melchior se mostram adições adoráveis. É incrível como todos eles funcionam e como o diretor sabe, inclusive, fazer um tubarão e uma doninha darem certo na tela. Ele abraça o nonsense, entregando uma obra imprevisível e divertidíssima.

Existe nas entrelinhas de “O Esquadrão Suicida” um debate audacioso sobre a presença massiva do governo norte-americano nos crimes de guerra e o que eles são capazes de fazer para omitir tal interferência. Ao fim, em um filme cercado de personagens de caráter duvidoso, o grande vilão é o próprio país e aquele que trai usando discursos pacíficos e patriotas. É irônico e traz provocação em suas boas reviravoltas.

A obra vem, claro, cercada de boas cenas de ação e com um visual caprichado. Depois de “Guardiões da Galáxia”, James Gunn acerta novamente, trazendo não apenas uma energia revigorante como, também, muito coração.

NOTA: 8,5

País de origem: EUA
Ano: 2021

Título original: The Suicide Squad
Disponível: HBO Max
Duração: 132 minutos
Diretor: James Gunn
Roteiro: James Gunn
Elenco: Idris Elba, Margot Robbie, John Cena, Daniela Melchior, Viola Davis, David Dastmalchian, Peter Capaldi, Alice Braga

Crítica: Pleasantville – A Vida em Preto e Branco

A cor dos novos tempos

Uma preciosidade presente no catálogo da HBO Max e que não tem o reconhecimento que merece. Que grata surpresa me deparar com esta belíssima produção de 98, que tão bem dialoga com o nosso tempo presente. Um filme que, ao falar justamente sobre uma sociedade ultrapassada, tão bem entendeu o futuro.

Escrito e dirigido por Gary Ross, que tempo depois levaria aos cinemas Jogos Vorazes, ele cria aqui uma distopia com uma bela crítica, através de um texto leve e apaixonante, que consegue causar impacto e trazer discussões relevantes, mais de vinte anos depois. Na trama, os irmãos David (Tobey Maguire) e Jennifer (Reese Witherspoon), são transportados para uma série de TV em preto e branco, Pleasantville, no qual o jovem garoto sempre foi aficionado. Ali dentro, eles precisam agir como se fossem personagens daquela cidade fictícia, no entanto, quando situações fogem do controle, aquele mundo passa a seguir uma nova ordem, ganhando vida própria. Ganhando, enfim, cor.

O roteiro de Gary Ross é fascinante e nos faz adentrar a esse universo fictício e a vibrar por seus belos acontecimentos. A vida em “Pleasantville” é perfeita e há algo nostálgico nesses personagens que facilmente nos lembram séries antigas de TV. É brilhante em como, aos poucos, com a chegada desses dois jovens do mundo real, esse universo vai se transformando, justamente quando eles trazem informações de que existe vida fora dali, sentimentos além daqueles que já conhecem. Que a vida pode ser mais do que viver aquela rotina repetitiva e episódica. Brilhante, então, em como a direção de arte vem como parte crucial da narrativa. O surgimento da cor causa espanto naquela comunidade e passa a dar início a uma revolução. Tudo é muito bem cuidado e ilustrado pelo fantástico visual, que segue como um sonho do qual não queremos acordar.

Claro que a crítica da obra seria mais eficaz se tivéssemos um elenco mais diversificado. Alguns discursos teriam ainda mais poder. Ainda assim, temos as ótimas presenças de Tobey Maguire, Reese Witherspoon, Joan Allen e Jeff Daniels. Algo que me incomoda, também, é seus instantes finais e como se conclui essa aventura. O destino dos protagonistas quebra bastante a lógica que havia criado até ali.

Em “Pleasantville” vemos uma sociedade conservadora sendo contestada. Pessoas firmes em suas ideologias ultrapassadas, que enfatizam a continuidade e não a alteração. Que definem o que é agradável e rejeita o que para elas não é. É curioso como aqueles que querem tanto manter tudo como sempre foi são aqueles que estão em uma posição de poder, líderes patriarcais que temem a liberdade de seus subordinados. Neste universo, a cor representa um novo olhar, a evolução que tanto precisamos. O preto e branco confunde nossa visão, é limitado, nos impede de ver a pluralidade das pessoas, a imensidão de cores que somos feitos. Tem muita gente que ainda luta por viver no preto e branco. E quanto mais os anos se passam e mais as gerações evoluem, o mundo ganha a cor que precisa, que melhor se adequa aos novos tempos.

NOTA: 9,5

País de origem: EUA
Ano: 1998

Título original: Pleasantville
Disponível: HBO Max
Duração: 124 minutos
Diretor: Gary Ross
Roteiro: Gary Ross
Elenco: Tobey Maguire, Reese Witherspoon, Joan Allen, Jeff Daniels, William H.Macy, Paul Waker