Crítica | Depois de Horas

A mediocridade do homem comum

Descobrir um pouco mais sobre a filmografia de Martin Scorsese é sempre uma viagem fascinante. Enquanto assistia a “Depois de Horas”, me vi refletindo sobre o quão versátil ele consegue ser e em como, mesmo com um orçamento mais baixo, ele é capaz de realizar algo de grande impacto. Encontro aqui um filme distinto em sua carreira, onde entrega uma comédia nada convencional, que flerta com o terror e nos provoca inquietação com sua trama mirabolante (e genial).

Nascido em Nova York e apaixonado pela cidade, Scorsese revela a vida noturna no local pelo olhar de um outsider. Paul Hackett (Griffin Dunne) é um operador de computadores e nosso azarado protagonista. Cansado da monotonia, depois do trabalho, ele decide se permitir viver uma nova experiência ao ir atrás de uma mulher sedutora. Tudo acaba fugindo de seu controle quando uma série de eventos inesperados invadem o seu conforto. A trama acontece quando poucas pessoas ainda estão acordadas e em uma hora misteriosa onde novas regras de convivência são aplicadas. Com forte inspiração em Hitchcock, o diretor cria uma atmosfera assustadora, onde tudo parece estar fora do lugar, imprimindo uma desconfortável sensação de vulnerabilidade. Paul não pertence a esse lugar e está sendo devorado por ele.

Assistimos, então, a uma sequência um tanto quanto divertida e que beira a aleatoriedade. Tudo vai dando errado para o personagem e, como consequência, vamos sentindo um grande desespero, principalmente quando ele se mostra extremamente passivo, sempre refém das escolhas dos outros. Tudo o que Paul quer é voltar para a casa e ele vai repetindo esse discurso até o ápice de sua aflição, quando entende que tudo o que queria era viver. No entanto, sua mediocridade como ser humano não cabe naquela vida, que o expulsa constantemente. Paul é o homem comum, coberto por seu casulo que ele chama de trabalho. Aquele universo que o entedia, mas que o protege do resto. É muito simbólico todo o ciclo que o roteiro cria, desse ser ordinário vivendo uma aventura silenciosa pelas ruas de Nova York, quase como um pesadelo do qual somente ele teve acesso. Dessa vida que ele nunca vai ter. Desse sonho que sempre se encerra e o desperta na hora exata para bater seu ponto e recomeçar sua rotina aborrecida.

É interessante que mesmo vivendo uma jornada sem regras, Paul parece vidrado no tempo. As horas coordenam seus passos, assim como no trabalho, seu habitat natural. Perdido e longe de casa, os ponteiros do relógio se tornam seus grandes inimigos, quase como uma bomba, que a qualquer hora pode explodir. A brilhante trilha de Howard Shore vem para acentuar essa tensão, com seus ticks e tacks que nos deixam vidrados. Tudo aqui é muito imprevisível, insano e provoca um riso nervoso. Ao nos fazer adentrar a mente paranoica do protagonista, vemos tudo como um possível enigma, nos fazendo duvidar de cada situação. Griffin Dunne está ótimo no papel e mergulha bem nessa loucura.

“Depois de Horas” é daqueles filmes que quanto menos você souber da história, melhor será a experiência. Fui sem muita noção do que encontraria e de repente me vi diante de um dos melhores de Scorsese. E para um diretor que dificilmente erra, isso é um grande elogio. Uma pequena e valiosíssima pérola em sua filmografia.

NOTA: 9,0

País de origem: Estados Unidos
Ano: 1985
Titulo original: After Hours
Duração: 97 minutos
Disponível: Aluguel em Prime Video, Apple TV, Google Play e Youtube
Diretor: Martin Scorsese
Roteiro: Joseph Minion
Elenco: Griffin Dunne, Rosanna Arquette, Linda Fiorentino, Catherine O’Hara

Crítica | As Pontes de Madison

O fim que traz eternidade

São raros os filmes de romance que nos atingem por completo. Muito provavelmente porque o cinema já falou de amor em tantas formas que é difícil nos deparar com algo longe dos clichês e que nos envolva profundamente com a história. “As Pontes de Madison” é um desses casos preciosos e emociona. Digo que me impactou como quase nenhum outro do gênero e, durante seus belos minutos, me deixou com o coração vibrando e imensamente apaixonado por tudo.

Baseado no livro de Robert James Waller, o filme conta com a direção do mestre Clint Eastwood, que também protagoniza ao lado de Meryl Streep. A atriz interpreta Francesca, uma mulher casada, mãe de dois filhos e que vive em uma região pacata no Estado de Iowa. Quando sua família se ausenta por quatro dias, ela acaba se envolvendo com o fotógrafo Robert (Eastwood), que está de passagem pelo local para registrar as pontes de Madison.

É poderoso esse encontro entre os dois personagens. Ficamos vidrados assistindo as conversas e os tantos sentimentos que existem ali. Francesca acredita ser ordinária demais, não digna daquela tórrida paixão. Clint, como diretor, ressignifica os cenários em que ela habita e, ao trazer um turbilhão de emoções, torna tudo aquilo que é banal em efervescência. É uma direção inteligente que, ao flagrar pequenos gestos, consegue descrever todo um contexto. Como quando, logo no início, em uma rápida interação familiar, compreendemos tudo aquilo que é ausência na protagonista e que, posteriormente, vai sendo preenchida.

Francesca precisa enfrentar um grande dilema: se entregar a um novo amor ou retornar a sua família, para aquela rotina de submissões, onde seus sonhos e vontades não são mais prioridades. Em um dos diálogos mais poderosos do filme, a protagonista faz um discurso intenso sobre os detalhes da vida e tudo aquilo que some da própria identidade quando se tem filhos. O que resta quando todos eles se vão? Já é tarde demais para saber quando, por todo esse tempo, deixou de olhar para si mesma. Estar com Robert é também uma chance de poder olhar para dentro e finalmente poder sentir o que deseja sentir. É sua libertação.

É então que o filme nos arrebata, quando faz uma interessante reflexão sobre paixão e tempo. Porque a grande verdade é que nada sobrevive e aquele rápido encontro só poderia ser eterno se tivesse um fim. Como aqueles sonhos do qual Robert fala em certo momento. Daqueles do passado e que se tornam importantes. Não por terem sido realizados, mas porque nos faz bem lembrar que um dia os tivemos. Mas para ser bom eles precisaram estar intactos, não vividos. Uma contradição poética e dolorosa para aqueles que amam..

“As Pontes de Madison” cresce com a maravilhosa sintonia entre Streep e Eastwood. Como é gostoso ver os dois contracenando. Aliás, não vou superar tão cedo aquela cena de Robert na chuva e Francesca segurando a maçaneta do carro (quem viveu, sabe). Uma obra sensível, romântica e que me fez me perguntar porque não havia visto essa preciosidade antes. Daqueles filmes que marcam e dificilmente saem de nós.

NOTA: 9,5

País de origem: Estados Unidos
Ano: 1995
Titulo original: The Bridges of Madison County
Duração: 135 minutos
Disponível: HBO Max
Diretor: Clint Eastwood
Roteiro: Richard LaGravenese
Elenco: Meryl Streep, Clint Eastwood