Crítica: Palmer

O dilema da masculinidade

É possível que você sinta que já viu “Palmer” em algum momento. O longa dirigido por Fisher Stevens é formulaico e traz como base uma premissa bem batida, a do ex-presidiário que tenta se redimir ao voltar à sua cidade natal. Mas nada disso estraga a experiência de ver o filme, muito pelo contrário.

A obra se mostra bastante necessária ao nosso tempo ao falar de um tema um tanto quanto tabu ainda hoje. Na trama, o personagem que dá nome ao título, interpretado por um emotivo Justin Timberlake, se depara em sua jornada com Sam (Ryder Allen), uma criança fruto de uma família problemática e que traz consigo claros traços de homossexualidade, logo, rejeitada na escola em que estuda, local em que Palmar passa a trabalhar. O foco da produção é justamente nesse laço que vai sendo construído entre os dois – que ganha inúmeras facilitações do roteiro – e como um recebe o suporte que precisa no outro, nesta constante busca por ser acolhido, ser aceito em uma sociedade sempre pronta para apontar o dedo e discriminar, seja qual for a razão.

É um confronto interessante entre Palmer e Sam. Duas gerações completamente diferentes. Do homem que aprendeu a ser o macho alfa e tem que entender o menino que brinca de bonecas e se identifica com as fadas de um desenho animado. O protagonista reconhece na criança a dor do abandono. Enquanto que Sam encontra na pessoa mais improvável, tudo o que mais precisa, seja de amor, de acolhimento, de um abraço forte vindo de alguém que o entenda. É belo em como o roteiro vai construindo essa relação, emocionando de forma honesta e arrebatadora. Não vem com discursos prontos sobre redenção, segundas chances ou sobre ser quem você deseja ser. As situações são apresentadas e se desenvolvem de forma natural, sem parecer pedante ou didático. Comove porque não clama por isso e porque é respeitoso o suficiente para tratar de temas delicados da maneira como precisávamos ouvir.

“Palmer” é, acima de tudo, um filme gentil. É aquele produto que nos abraça, nos conforta e nos faz acreditar que estamos evoluindo. É muito sensível a maneira com que fala sobre a homossexualidade infantil e fiquei feliz por ver uma obra tão terna e tão acolhedora como esta. Chorei porque vi algo muito doce e sincero ali. Chorei com um sorriso no rosto e são poucos os filmes que tem este poder.

NOTA: 9

  • País de origem: EUA
    Ano: 2021
    Disponível: Apple TV+
    Duração: 128 minutos
    Diretor: Fisher Stevens
    Roteiro: Cheryl Guerriero
    Elenco: Justin Timberlake, Alisha Wainwright, Ryder Allen, Juno Temple, June Squibb

Crítica: Pieces of a Woman

O pedaço que falta

Em 1940 aconteceu um caso um tanto quanto incomum na pequena cidade de Tacoma. Poucos meses depois de uma aguardada ponte ganhar vida, ela cai após uma forte ventania. Até hoje, estudiosos tentam elaborar teorias sobre o que poderia ter acontecido, encontrando explicações tanto no histórico do local como na física. Nos tempos atuais, temos aqui, como cenário, uma cidade com uma outra grande ponte em construção e a avistamos ali distante, em evolução, mas sempre com um buraco faltando, sempre incompleta. Aquele pedaço importante que impede os outros de chegarem no lado oposto

É com essa analogia que o diretor húngaro Kornél Mundruczó cria “Pieces of a Woman”, seu primeiro longa falado em inglês. Ele narra a dolorosa jornada de Martha, uma mulher que perde o filho logo após o parto. Os primeiros 30 minutos que ele nos entrega são dilacerantes. A cena do parto é forte, real e a opção de registrar este instante em um plano sequência foi certeira. Ainda que entregue o ápice do filme no começo, não vejo como algo negativo, faz sentido dentro da narrativa, logo que o que vem depois é apenas o silêncio, o vazio que nasce na vida daquela mulher despedaçada, vivendo no abismo que nasce entre ela e as pessoas que estão ao seu redor, que não possuem a sensibilidade de entender o que ela enfrenta. Martha é aquela estrutura que precisa ser forte, continuar em pé, mesmo quando falta algo que a completa.

É brutal toda sua batalha interna na qual a personagem enfrenta, essa luta silenciosa de seguir com tamanha dor e ainda precisando lidar com pessoas diminuindo seus sentimentos ou lhe dizendo como se sentir. Vanessa Kirby é potente e transmite com precisão esse momento tão delicado. A atriz se entrega ao papel e é lindo presenciar esta sua evolução. O elenco todo é fantástico, revelando bons momentos de Shia LaBeouf, Sarah Snook e a veterana Ellen Burstyn que finalmente ganha um papel a sua altura. Fazia tempo que o cinema devia isso a ela e é brilhante o que ela faz em cena.

Kornél é um dos grandes diretores que temos em atividade no cinema e sempre me choca a perfeição com que ele finaliza suas obras. São produções desafiadoras, que causam impacto e fico feliz em ver este reconhecimento. É um cara que vai longe. “Pieces of a Woman” é o filme que mais gostei dele e é ótimo também ver algo assim chegando na Netflix. O único detalhe que me incomoda um pouco é sua trilha sonora. Tive a sensação de que ela entra em alguns momentos indevidos, crescendo em cena quando o silêncio seria mais efetivo. No mais, um baita filme, bem escrito, dirigido e incrivelmente atuado.

NOTA: 9,0

  • País de origem: EUA
    Ano: 2021
    Disponível: Netflix
    Duração: 128 minutos
    Diretor: Kornél Mundruczó
    Roteiro: Kata Wéber
    Elenco: Vanessa Kirby, Shia LaBeouf, Ellen Burstyn, Sarah Snook, Bennie Safdie, Molly Parker

Crítica: Malcolm & Marie

O lugar errado da fala

Em algum momento alguém afirmou que Sam Levinson era visionário e isso claramente afetou o ego do homem. Sim, “Euphoria” e “Assassination Nation” tem muitas qualidades, mas chega a ser cômico como ele decidiu, posteriormente, fazer um filme porque recebeu uma crítica ruim e precisava desabafar. Mais do que imaturo é um passo perigoso.

Filmado durante a pandemia em um período de duas semanas, é interessante assistir o resultado alcançado pelo cineasta. É um exercício ousado, que acontece todo dentro de uma casa e apenas dois atores em cena. A forma como ele explora os espaços e sua câmera caminha pelos ambientes, dão um tom ágil à produção. O texto é feroz e revela uma eterna DR entre um casal composto por um diretor de cinema e uma jovem atriz com passado turbulento. Uma lavação de roupa suja que até tem seus momentos de brilho ao questionar esse relacionamento tóxico vivido pelos protagonistas, que se machucam a todo instante, no entanto, o roteiro peca na repetição. O casal abre feridas, as fecham para logo em seguida abrir novas, construindo uma narrativa cíclica enfadonha, verborrágica e infértil.

Há, em cena, ótimos diálogos e dois atores se doando, mas nada passa verdade. Zendaya e John David Washington se esforçam, mas o sentimento dito morre no texto e nunca alcança a interpretação dos dois. É tanta encenação que não há espaço para construir uma química entre os atores, que clamam por atenção, gritam para serem ouvidos, mas que só funcionam isoladamente. Culpa do roteiro que precisa dar um monólogo incrível de cinco em cinco minutos para cada um ter o seu Oscar tape.

“Malcolm e Marie” me faz pensar, ainda que um termo banalizado recentemente, em lugares de fala. Sam Levinson tenta limpar sua barra através de sua prepotência em se mostrar conhecedor da arte do cinema e expor suas frustrações enquanto criador através de um interlocutor preto. É perigoso e covarde quando ele verbaliza na tela tudo aquilo que não poderia enquanto homem branco. O mesmo acontece quando a personagem de Zendaya questiona a sexualização feminina em filmes dirigidos por homens, enquanto ela é sexualizada durante todo o filme. Levinson tenta abraçar essas causas sociais quando, na sua pele, nada afeta. São discursos vazios de um homem que realiza um produto egocêntrico, vomitando suas verdades, sem parecer que é tudo sobre ele mesmo.

NOTA: 6,0

  • País de origem: EUA
    Ano: 2021
    Disponível: Netflix
    Duração: 106 minutos
    Diretor: Sam Levinson
    Roteiro: Sam Levinson
    Elenco: Zendaya, John David Washington

Os 9 melhores filmes originais da Netflix em 2020

No meio de muita produção duvidosa, a Netflix conseguiu entregar alguns filmes realmente bons em 2020. Em um período em que quase não tivemos lançamentos na tela grande, a gigante do streaming nos permitiu ter acesso a novidades e manter acesa aquelas boas discussões sobre cinema.

“Mank”, “Os 7 de Chicago”, “A Voz Suprema do Blues” tem suas qualidades, mas vou deixar os Oscar Baits de fora aqui. Espero que gostem dos selecionados e deixo aqui como dicas para assistir, caso não tenham visto algum.

Menções honrosas: Tempo de Caça, A Caminho da Lua, Ninguém Sabe Que Estou Aqui, Ya No Estoy Aquí, Seu Nome Gravado em Mim.

9. A Trincheira Infinita
de Jon Garaño, Aitor Arregi, José M. Goenaga | Espanha

Quando uma Guerra Civil explode na Espanha, um homem, por medo de represálias das autoridades, decide viver escondido dentro da própria casa. É um relato forte, emocionante e um registro assustador de uma época, de muitas histórias. A produção é incrível e nos faz mergulhar nos sentimentos dos protagonistas ao longo de vários anos, vivendo pelo medo e pela dor de existir e não poder ver o lado de fora.

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8. Tigertail
de Alan Yang | EUA

A singela história de uma vida. “Tigertail” mergulha nas lembranças de um imigrante taiwanês que, para ter uma vida melhor, abandonou seu grande amor e sua família para viver em Nova York. O longa revela essa experiência bastante íntima de um imigrante, cheia de perdas e danos, com muita sensibilidade. Emociona nesse relato da busca por um sonho que nunca se alcança.

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7. Happy Old Year
de Nawapol Thamrongrattanarit | Tailândia

O filme acompanha a história de uma mulher que se depara com inúmeras lembranças de sua vida ao decidir descartar inúmeros objetos de sua casa. E nesta atividade de reviver o passado para seguir em frente, ela decide ir atrás do ex-namorado com quem nunca teve um fim digno. Simples, original e bastante delicado.

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6. Você Nem Imagina
de Alice Wu | EUA

As comédias românticas teen da Netflix parecem seguir uma fórmula. Justamente por isso foi tão bom encontrar “Você Nem Imagina”, que tem como base uma série de clichês do gênero mas inova na condução, entregando um texto maduro e bastante sensível.

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5. O Que Ficou Para Trás
de Remi Weekes | Reino Unido, Irlanda do Norte

Uma outra grande surpresa que surgiu no catálogo em 2020 foi “O Que Ficou Para Trás”, terror psicológico britânico que foge das fórmulas ao narrar a jornada de um casal de imigrantes recomeçando a vida na Inglaterra. Sem distinguir o que é pesado e realidade, eles são confrontados pelos fantasmas do passado. É instigante, inteligente e muito bem realizado.

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4. O Diabo de Cada Dia
de Antonio Campos | EUA

Com um elenco fantástico, o filme narra inúmeras histórias e personagens que vão se cruzando ao longo do tempo e tem como base o rancor, o medo e a obsessão religiosa. O roteiro é brilhante e caminha respeitando cada trama e seus belos desdobramentos.

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3. A Sun
de Mong-Hong Chung | Taiwan

Drama taiwanês bastante emocionante. O filme revela a dor de uma família depois de dois eventos trágicos e como eles tiveram que sobreviver. Apesar da longa duração, o longa tem bom ritmo e encanta pela delicadeza ao falar sobre redenção, perdão e recomeços.

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2. The 40-Year-Old Version
de Radha Blank | EUA

Primeiro filme escrito e dirigido por Radha Blank, “The Forty-Year-Old Version” é uma bela surpresa. Como mulher preta, ela entrega aqui seu grande manifesto e sua insatisfação de envelhecer no meio artístico e os tantos percalços que precisa enfrentar. É um discurso bastante íntimo e revelador, bastante necessário.

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1. Joias Brutas
de Josh Safdie, Ben Safdie | EUA

Foi lá no começo do ano quando a Netflix lançou essa preciosidade. Dificilmente ela lançaria algo a altura ou melhor que “Joias Brutas”. Dirigido pelos irmãos Safdies (Bom Comportamento), o longa coloca Adam Sandler ao avesso e revela a mais potente atuação de sua carreira. É um filme revigorante, inquietante, que nos faz rir de nervoso e nos faz vibrar pela insana trajetória de seu brilhante protagonista.

Crítica: Alguém Avisa?

o tempo de cada um

“Happiest Season” tem aquele mesmo poder alcançado por “Love, Simon” há alguns anos atrás. Aquele produto simples, sem pretensão alguma mas extremamente necessário. Necessário quando, por anos, histórias LGBTs foram ignoradas e hoje elas ganham espaço para dialogar com tanta gente, em uma linguagem acessível a tantos jovens e tantas famílias. Pode soar, para muitos, como só um filme sessão da tarde. Mas não é, porque seu discurso é poderoso, porque ele está contando uma história de amor para aqueles que nunca tiveram referências. Porque ele está dizendo que é possível.

Na trama, Abby (Kristen Stewart) planeja pedir em casamento sua namorada Harper (Mackenzie Davis) durante o feriado de Natal ao lado dos sogros. No entanto, durante a viagem, descobre que Harper não é assumida para a família. Como toda comédia romântica natalina, tudo, obviamente, dá muito mais errado do que o planejado.

O filme acaba forçando bastante nas situações, pesando a mão naquele humor que causa desconforto, nos fazendo, inclusive, a questionar se o casal deveria realmente ficar junto. Ainda assim, diverte e nos envolve com seus carismáticos personagens. Aquele clichezinho bom de assistir, que faz bem para o coração, que apesar de parecer seguir fórmulas de comédias natalinas, ter um casal lésbico a frente de tudo, o torna um produto novo. Kristen Stewart tem carisma, mas ainda assim falta entrega, aquela real vontade de estar ali. Mackenzie Davis é sempre ótima, mas sua personagem acaba se apagando aqui, o que acaba sendo ofuscada pelos ótimos coadjuvantes vividos por Aubrey Plaza e Dan Levy.

Ter uma mulher assumidamente homossexual na direção fez toda a diferença. Clea Duvall traz honestidade e muito de si ali dentro. “Happiest Season” acerta em cheio em seu discurso final, a de que cada pessoa gay terá sua própria jornada de aceitação. É um caminho doloroso para todos, porque nada vem fácil e porque envolve medo, envolve rejeição, envolve a incerteza do que vem depois.

Simples e necessário. Imensamente necessário.

NOTA: 8

  • País de origem: EUA
    Ano: 2020
    Título Original: Happiest Season
    Duração: 102 minutos
    Diretor: Clea DuVall
    Roteiro: Clea DuVall
    , Mary Holland
    Elenco: Kristen Stewart,
    Dan Levy, Alison Brie, Aubrey Plaza, Mackenzie Davis, Mary Holland, Victor Garber, Mary Steenburgen

Crítica: O Tigre Branco

comendo vivo

Bela surpresa na Netflix, “O Tigre Branco” tem potencial para ganhar um forte público nas próximas semanas. Temos aqui uma boa mistura de “Parasita” e “Quem Quer Ser um Milionário?”. Não que alcance o brilhantismo dessas duas produções, mas só pela comparação já o torna digno de ser assistido.

O filme tem como intenção contar os valores da Índia através da história de um homem, o motorista Balram, que vindo de uma região pobre, busca por sua ascensão no mundo dos ricos. Trata-se um texto provocativo e que escancara a desigualdade social existente no país e nesta relação patrão e empregado fortemente enraizado na sociedade. O roteiro é uma adaptação do livro homônimo de Aravind Adiga, lançado em 2008.

O mais surpreendente no longa é o fato de nunca vitimizar seu forte protagonista. Ele sofre, perde, mas para vencer é capaz de atrocidades. Existe uma linha tênue ali entre sonho e obsessão, entre coragem e crueldade. O ator Adarsh Gourav é carismático e nos seduz para dentro da trama. Destaque, também, para a atriz Priyanka Chopra que se sai muito bem como coadjuvante.

A quase que ininterrupta narração acaba por atropelar diversos acontecimentos da trama, por vezes, nos impedindo de desfrutar alguns desdobramentos que mereciam mais cuidado. O final é um claro exemplo disso. Simplesmente acontece, nos é explicado, mas é abruptamente resolvido. Outro momento é quando envolve um assassinato que poderia levar o filme para uma nova direção, mas se encerra com a mesma facilidade em que começou. Tendo isso em mente, sinto que temos uma história poderosa mas que nunca ganha o tratamento que merecia, principalmente por esta pressa em terminar os tantos ciclos que inicia.

A direção de Ramin Bahrani (99 Casas) funciona, trazendo dinamismo e ritmo para um filme que nunca perde a empolgação. É o momento mais comercial de sua carreira que, espero, o alavanque para novos e interessantes projetos no futuro.

NOTA: 7

  • País de origem: EUA
    Ano: 2021
    Título Original: The White Tiger
    Duração: 125 minutos
    Diretor: Ramin Bahrani
    Roteiro: Ramin Bahrani
    Elenco: Adarsh Gourav, Rajkummar Rao
    , Priyanka Chopra