Crítica: A Menina Que Matou os Pais / O Menino Que Matou Meus Pais

A versão que melhor contamos

Poucos casos tiveram tanta repercussão no Brasil como o Richthofen. Foi em 2002 quando o país parou para ver a chocante história da jovem que matou os próprios pais, ao lado do namorado. Era de grande espera do público ver o acontecimento ganhando as telas e isso finalmente veio. De uns anos para cá, o “true crime” vem ganhando mais espaço na produção audiovisual brasileira e é assim que o longa dirigido por Maurício Eça dá um passo significativo nesse subgênero tão pouco explorado por aqui. Claro que vem recheado de falhas, mas ainda assim é ótimo ver o cinema nacional se arriscando em um projeto nada convencional. Aqui, separado em dois filmes, vemos mais do que apenas duas perspectivas sobre o mesmo crime, vemos duas histórias completamente diferentes que, ao se contradizerem, revelam o brilhantismo da produção.

É interessante como as histórias se completam e como, ao ser narrado por cada um dos réus, Suzane (Carla Diaz) e Daniel Cravinhos (Leonardo Bittencourt), cada versão tem sua vítima. Com falas e situações retiradas dos depoimentos reais, a obra acerta nessa divisão, porque nos permite ver os dois lados do acontecimento.

Nunca é exatamente sobre o planejamento do crime, mas como ao contá-lo, naturalmente, ambos tentam endomonizar o outro, como forma de defesa. O grande acerto do texto é ter essa fluidez em cada um dos filmes, seja dessa memória falha, seja dessas contradições. Você acredita em cada uma dessas versões, você compra o que lhe é contado, porque ambos são espertos e narram da forma que melhor os beneficiam. Eles não estão apenas contando, estão se defendendo de nós, o público. A obra nos coloca na pele de um juiz, ouvindo atentamente, permitindo que o julgamento seja feito por nós. A sentença é dada, mas nos permite escolher em que lado acreditar.

Ainda que seja uma experiência nova no nosso cinema, o roteiro peca, muitas vezes, por jogar as cenas sem muito contexto, sempre dependente da outra versão. A trama não é desenvolvida de forma natural, sempre jogando os atos sem qualquer tipo de preparo. São puramente relatos filmados, sem o cuidado de se aprofundar nas situações e nos protagonistas. Acaba saindo tudo muito seco, sem a emoção necessária para nos jogar para dentro da ação. O filme não sabe criar tensão e aquela atmosfera de pavor. Inclusive, o próprio planejamento do assassinato tem pouco espaço aqui e surge às presas. Como consequência de tudo isso, entrega um final anticlimático, estranhamente linear. Que espanta sim e nos choca pelo caso real, mas não por mérito da produção.

O elenco, por sua vez, é esforçado. A real potência de Carla Diaz e Leonardo Bittencourt está em construir dois personagens completamente diferentes em cada versão e nos convencer dessa visão de cada um. Ainda assim, sinto que falta direção que dosasse melhor certos comportamentos que soam exagerados. Aliás, a mão de Maurício Eça em todo o projeto vem com pouca inspiração. Não sei se pela pressa em finalizar dois filmes ao mesmo tempo, mas faltou capricho e cuidado em muitas sequências. A fraca caracterização é um exemplo dessa ausência de refinamento. A peruca usada por Carla Diaz nas cenas do tribunal é vergonhosa.

Apesar das falhas, “A Menina Que Matou Os Pais” e “O Menino Que Matou Meus Pais” é uma experiência interessantíssima, que intriga e nos deixa refletindo sobre o que é real e o que não é. Nossa memória é falha e ela vem com julgamentos. Nada que contamos possui a verdade extrema, porque simplesmente não somos os mesmos na história que contamos e na que os outros contam sobre nós.

NOTA: 7,0

País de origem: Brasil
Ano: 2021
Disponível: Prime Video
Duração: 85 / 87 minutos
Diretor: Maurício Eça
Roteiro: Raphael Montes, Ilana Casoy
Elenco: Carla Diaz, Leonardo Bittencourt, Leonardo Medeiros, Vera Zimmermann

Crítica: Canário

Pássaro que voa

São raras as produções sul-africanas que chegam por aqui e “Canário” vem com uma proposta bem interessante que merece ser descoberta. A trama acontece em 1985, em um país dividido pelo Apartheid, quando Johan (Schalk Bezuidenhout) é convocado a se alistar no exército. Ele é um jovem que vive o conflito sobre sua homossexualidade e precisa encarar não só essa separação do mundo diante de uma guerra, como a rejeição que tem sobre si diante do ódio que recebeu dos outros.

O protagonista, então, é colocado em um cenário onde a masculinidade é exacerbada e onde o bullying contra aqueles que são diferentes é posto em prática, intensificando esse sentimento de ser um outsider. O longa nos mostra, aliás, uma parte do exército nada comum: o grupo de coral chamado “Canários”. Aqui, Johan entra para o seleto time de cantores que tem como missão trazer um momento de paz e descontração aos soldados em período de guerra. O reverendo aqui usa farda e as ações dos combates são descritas com discursos religiosos. Ainda que todos tenham a música como paixão, eles são obrigados a usá-la em uma luta da qual não acreditam, com propósitos que não se identificam.

É assim que “Canário” desenha uma narrativa bastante conflituosa entre guerra e religião e entre ser o que deseja ser em um ambiente que claramente não te aceita. A música vem, então, para preencher todas essas batalhas que vão sendo desenvolvidas. Johan sempre viveu da culpa e sempre teve em seu fone de ouvido a proteção que precisava do mundo. Ele é como esse Canário enjaulado, que não consegue ser livre, que sente medo do lado de fora. Se sente mal pelo o que é e pelo o que sente. Nesse lugar amedrontador ele tem a música como salvação e no amor, que encontra em outro homem, enfrenta sua jornada de auto aceitação, de que pode existir vida além das suas grades. De que ele pode ser um canário que também voa.

É brilhante quando a obra abraça o musical, entrando em cena quase como esse mundo paralelo e utópico no qual o protagonista deseja viver. O filme tem um ritmo ótimo e algumas sequências belíssimas de se ver, como quando o coral canta para os combatentes. Apesar dos temas pesados, tudo é guiado com humor e sensibilidade, nos fazendo apaixonar pelos personagens e pela adorável sintonia que um tem com o outro. “Canário” é um filme especial, que encanta, emociona e que, com certeza, dialoga com muita ternura com os jovens que ainda, assim como o protagonista, buscam por inspiração e coragem para serem livres.

NOTA: 9,0

País de origem: África do Sul, Canadá
Ano: 2018

Título original: Kanarie
Disponível: Prime Video
Duração: 124 minutos
Diretor: Christiaan Olwagen
Roteiro: Charl-Johan Lingenfelder, Christiaan Olwagen
Elenco: Schalk Bezuidenhout, Hannes Otto

Crítica: Pinóquio

uma jornada sombia e sem energia

Adaptação do conto original de “Pinóquio” de Carlo Collodi, temos aqui uma produção que recupera aquele ar melancólico e sinistro que não vimos na versão que conhecemos da Disney. A direção é do italiano Matteo Garrone, que em 2016 realizou “O Conto dos Contos” e provou ser a pessoa certa a comandar este ambicioso projeto. Com uma atmosfera sombria e personagens assustadoramente peculiares, o filme pode ser um tanto perturbador aos pequenos e provavelmente agradará os mais crescidos.

Roberto Benigni é quem dá vida ao marceneiro Geppetto. O trabalhador solitário que deseja que o boneco que acabou de construir ganhe vida. É assim que “nasce” Pinóquio, um menino que, curioso pela vida e extremamente desobediente, se perde do pai, precisando assim, encarar sozinho os perigos do mundo. Ele se depara com a pobreza e com a maliciosa habilidade dos adultos em se dar bem. É um caminho cruel, repleto de criaturas fantásticas. A produção é um deleite e ilustra incrivelmente bem esse universo. Os figurinos, a maquiagem e os efeitos especiais práticos nos levam a vivenciar esse cinema não mais usual. Tudo em cena é mágico e real, de uma grandeza e cuidado que comove. Visualmente, é o filme mais lindo que vi esse ano e espanta por esse trabalho absurdo de toda a equipe.

Apesar da belíssima produção, a narrativa de “Pinóquio” é cansativa. Falta carisma nesse personagem que, infelizmente, é bastante irritante e com motivações nem sempre muito claras. Não vibramos por sua jornada e o texto, em nenhum momento, nos convida a compartilhar de suas conquistas. A narrativa é episódica e estranhamente linear, onde nem todas as passagens fluem bem ao decorrer, perdendo o fôlego. As situações que nos apresenta causam fascínio pela excentricidade, mas soam como pontas soltas perdidas, nem sempre bem costuradas pelo roteiro.

Um live action sombrio, belo de se apreciar, mas é aquela vista bonita que olhamos de longe, sem nunca participar. Uma aventura que até tem coração, mas falta energia que dê vida a toda essa deslumbrante fantasia que vemos na cena.

NOTA: 6,5

País de origem: Itália, França, Reino Unido
Ano: 2019

Título original: Pinocchio
Duração: 125 minutos
Diretor: Matteo Garrone
Roteiro: Matteo Garrone
Elenco: Roberto Benigni, Federico Ielapi

Crítica: Objetos Cortantes

As consequências do corte

Por muito tempo as pessoas me recomendaram esta minissérie, mas sempre deixei para depois. Apesar de ter Amy Adams no elenco, nada mais me atraia muito. Agora presente no catálogo da HBO Max, resolvi dar uma chance. E foi a melhor coisa que fiz.

“Objetos Cortantes” começa não muito bem, preciso ressaltar. Os três primeiros episódios apresentam o universo de forma entediante. A jornalista Camille, interpretada brilhantemente por Amy Adams, volta para sua cidade Natal para escrever sobre o assassinato de uma adolescente. Nada disso é novidade e a produção não se esforça em tornar muito atrativo também. Em sua estadia, passa a dormir na antiga casa, precisando conviver com sua família, do qual não guarda nada além de ressentimentos. São relações tóxicas e que causam um constante desconforto. Ali, naquela pequena cidade, ela é assombrada por suas lembranças e dominada por seus vícios autodestrutivos.

A grande genialidade da minissérie é que toda essa introdução nos despista do que realmente pretende falar. Todos os indícios estão ali, só estamos olhando para os detalhes errados. Baseado no livro de Gillian Flynn, “Objetos Cortantes” vai seguindo um rumo interessantíssimo. Pausado, silencioso, mas imensamente intrigante. Com o decorrer dos episódios, o show ganha vida e nos vemos completamente imersos nesse seu universo, tentando entender esses fragmentos do passado da protagonista e tudo o que ela enfrentou para chegar aqui. São histórias de abusos, controle, violência e luto. Nem tudo é tão claro, mas a grandeza da interpretação de Amy Adams é justamente essa. Seu olhar e sua postura dizem muito e nos carrega ao seu lado.

O elenco ainda traz ótimas atuações da veterana Patricia Clarkson e a grata revelação de Eliza Scanlen. A jovem atriz impressiona, entregando uma coadjuvante de peso e de grande complexidade. A direção fica por conta de Jean-Marc Vallée que, por vezes, peca nessa montagem estranhamente picotada que traz de “Big Little Lies”, mas também encanta e nos seduz pela forma como vai guiando o show. A direção de arte também se destaca, onde a casa onde os grandes conflitos acontecem é abarrotada, cercada de objetos de outro tempo, que apesar de preencherem os espaços, não possuem vida. Seus florais são mórbidos, fúnebres, ilustrando com perfeição o estado em que as personagens se encontram.

Ao decorrer dos episódios, a minissérie vai deixando rastros sobre suas reais intenções e quando a verdade nos alcança compreendemos o brilhantismo do roteiro, que não entrega nada de forma óbvia. “Objetos Cortantes” termina em seu ápice. A virada final surpreende, se encerrando de forma espetacular.

A cidade está matando as garotas. É neste cenário desesperançoso que a protagonista se vê obrigada a confrontar toda a sua dor. Essa dor que ela precisa exteriorizar, carregar na pele, sentindo a punição por ainda estar viva. Essas três mulheres que se encontram, de gerações distintas, também possuem definições distorcidas do que é machucar. E nenhuma delas sabe medir as consequências de um corte.

NOTA: 9,0

País de origem: EUA
Ano: 2018

Disponível: HBO Max
Duração: 429 minutos / 8 episódios
Diretor: Jean-Marc Vallée
Roteiro: Alex Metcalf, Marti Noxon
Elenco: Amy Adams, Chris Messina, Eliza Scanlen, Patricia Clarkson, Henry Czerny

Crítica: O Esquadrão Suicida

o retorno triunfante

O ano é 2016, ao som de Queen, um trailer ambicioso surgia e o filme se tornava uma grande promessa. O tombo veio e “Esquadrão Suicida” foi esmagadoramente criticado pelo público e crítica. Logo, uma sequência parecia o caminho mais tolo a ser seguido. É então que o projeto cai nas mãos certas e James Gunn, ainda que traga alguns personagens de volta, reinicia com vigor a franquia, entregando um produto autêntico e extremamente eficiente.

Autenticidade é uma palavra rara a ser usada quando falamos do universo dos heróis, em geral, no cinema. Quando se encontra a fórmula do sucesso, não há criador que possa interferir. É assim que assistir a um filme claramente assinado por um diretor traz frescor, um respiro necessário. “O Esquadrão Suicida” não é apenas muito prazeroso de assistir como também comprova a esperteza de James Gunn. Traz estilo sim, mas o grande acerto aqui se encontra no texto, que sabe dosar o humor, a dramaticidade e, principalmente, sabe como valorizar seus bons personagens. Cada um tem seu momento de glória ali e, como consequência, muito diferente do que havia sido feito antes, nos afeiçoamos a cada um deles, vibramos pela jornada, pelas conquistas.

Já nos primeiros minutos, temos uma virada genial na narrativa. E, felizmente, o roteiro é esperto o bastante para manter esse fator surpresa até o fim. A obra tem uma premissa extremamente simples, onde os nossos supervilões são recrutados pela Força Tarefa X que, para uma redução de sentença, aceitam salvar o mundo de uma grande ameaça e destruir um projeto militar. A grande graça aqui é ver esses personagens desajustados se unindo por um único objetivo. Há sintonia entre todos eles e o elenco se mostra muito à vontade. Margot Robbie enche a tela com seu brilho e Idris Elba, John Cena e a revelação Daniela Melchior se mostram adições adoráveis. É incrível como todos eles funcionam e como o diretor sabe, inclusive, fazer um tubarão e uma doninha darem certo na tela. Ele abraça o nonsense, entregando uma obra imprevisível e divertidíssima.

Existe nas entrelinhas de “O Esquadrão Suicida” um debate audacioso sobre a presença massiva do governo norte-americano nos crimes de guerra e o que eles são capazes de fazer para omitir tal interferência. Ao fim, em um filme cercado de personagens de caráter duvidoso, o grande vilão é o próprio país e aquele que trai usando discursos pacíficos e patriotas. É irônico e traz provocação em suas boas reviravoltas.

A obra vem, claro, cercada de boas cenas de ação e com um visual caprichado. Depois de “Guardiões da Galáxia”, James Gunn acerta novamente, trazendo não apenas uma energia revigorante como, também, muito coração.

NOTA: 8,5

País de origem: EUA
Ano: 2021

Título original: The Suicide Squad
Disponível: HBO Max
Duração: 132 minutos
Diretor: James Gunn
Roteiro: James Gunn
Elenco: Idris Elba, Margot Robbie, John Cena, Daniela Melchior, Viola Davis, David Dastmalchian, Peter Capaldi, Alice Braga

Crítica: Memórias de um Amor

Memória háptica

Uma mistura interessante entre “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” e a viagem dentro das memórias com “Sentidos do Amor”, o relacionamento que nasce em uma crise pandêmica. Provavelmente quando foi planejado, “Little Fish” não tinha intenção de dialogar tanto com o que a sociedade viria a presenciar, logo que foi finalizado antes mesmo da COVID. É assim, que hoje, a obra vem com um peso enorme, porque conversa com nossos medos atuais e esta incerteza do amanhã.

A sociedade é devastada por uma doença nova. Os sinais desse vírus é o esquecimento. Pessoas em cada canto do mundo começam a perder a memória e é neste cenário caótico que Emma (Olivia Cooke) decide escrever sua história de amor ao lado de Jude (Jack O’Connell), antes que pudesse esquecer. É assim que mergulhamos nas lembranças do casal, dos instantes de glória e excitação pela novidade à rotina, aos momentos de perda. Enquanto ela regista em palavras, ele registra com a fotografia. Ambos lutando por permanecer.

Essa jornada apresentada em “Little Fish” funciona não apenas por ter dois excelentes atores como casal, mas também pela incrível produção que enriquece cada instante. A direção de Chad Hartigan é bastante assertiva e entrega um produto sensível ao falar sobre esquecimento e apaixonante ao falar sobre amor, sobre a vida a dois. O trabalho de direção de arte também engrandece a experiência, ilustrando com muito cuidado cada detalhe, como quando altera uma mesma cena para mostrar essa memória em mutação, que se equivoca. Há poesia nessas escolhas e muito coração também.

O roteiro é belíssimo e nos leva junto a vivenciar a história do casal, nos envolvendo em cada diálogo, em cada troca de afeto. Onde início e presente nunca é certo, nos enganando, nos fazendo duvidar ao lado deles. Em “Little Fish”, amor é memória, uma narrativa de soma, uma construção. Sem memória não nos resta nada, nenhum apego, nenhuma marca do que vivemos. Quantas histórias guardamos em uma foto? Quantas lembranças nos despertam com o toque, com o olhar. Aquele ato simples mas que nos traz a certeza do porquê amamos, do porque queremos estar ali naquele presente, mesmo que o futuro não exista.

NOTA: 8,5

País de origem: Canadá, EUA
Ano: 2021

Título original: Little Fish
Duração: 101 minutos
Diretor: Chad Hartigan
Roteiro: Aja Gabel, Mattson Tomlin
Elenco: Olivia Cooke, Jack O’Connell, Raúl Castillo

Crítica: A Nuvem Rosa

A vida fria do lado de dentro

Um dos raros títulos nacionais que passaram pelo renomado Festival de Sundance, “A Nuvem Rosa” chega por aqui com lançamento exclusivo do Telecine Play. A produção descreve muito do que vivemos hoje com a pandemia, mas o que a torna tão fascinante é o fato de ter sido finalizada antes da COVID. É bizarro assistir ao filme e ver tanta coisa relacionada com nossa atual realidade. É profético ao falar sobre o comportamento humano diante de uma quarentena.

Uma nuvem rosa mortal surge aos céus, obrigando todos os cidadãos a se trancarem onde quer que estejam. É assim que Giovana (Renata de Lélis) é obrigada a ficar isolada na casa de Yago (Eduardo Mendonca), seu acompanhante da noite anterior. Eles são forçados a construir uma relação ali dentro, se adaptando à nova realidade, distante de todos que amam, distante da vida que conheciam.

Escrito e dirigido pela estreante Iuli Gerbase, o longa não está interessado nas explicações do evento e nem como o mundo lá fora reage à presença da nuvem. Seu foco está nesse casal precisando lidar com o isolamento, espantando com as desconfortáveis similaridades com o que enfrentamos hoje. Essa necessidade de buscar novos meios de trabalho, estudo, comunicação e até mesmo uma simples compra ao mercado. Trazendo, ainda, ideias interessantíssimas como o uso do óculos de realidade aumentada e os tubos conectados aos apartamentos para entrega de produtos. Gerbase traz uma visão ampla desses novos comportamentos e transformações sociais, entregando um produto incômodo e pessimista. O rosa, claro, está sempre presente. E a produção faz bom proveito disso, entregando cenas visualmente belas.

Entretanto, para um filme que diz sobre solidão e essa carência do contato, “A Nuvem Rosa” vem em um formato muito mecânico. Não traz naturalidade na presença do casal, que conversam diante de um bom texto ensaiado, mas sempre ausente de sentimento. Os saltos temporais avançam a narrativa e ilustram bem esse tempo que passa e nós estagnados no mesmo espaço, dias após dias. Ainda que tenha uma intenção aqui, esses avanços nos afastam ainda mais dos personagens, sempre muito distantes, sem alma. Existe, claro, uma identificação fácil diante das situações em que narra, no entanto, falta uma direção mais segura quanto ao elenco.

O filme pincela inúmeros temas interessantes, mas não se aprofunda muito em nenhum deles. Como quando joga a bomba que as amigas da irmã estão grávidas do homem do qual estão confinadas e depois nunca mais temos notícias sobre isso. É tudo, infelizmente, muito expositivo, calculado e essas informações nunca chegam de forma fluída pelo texto. Seja quando fala sobre redes sociais, o papel da mulher, a infância na quarentena, tudo é muito bem pontuado, mas chega sem a destreza de um texto que torne todos esses debates mais orgânicos na tela.

“A Nuvem Rosa” termina e nos deixa em silêncio. Essa falta de perspectiva diante de um cenário desolador com esse nos inunda. O filme nos lembra desse desespero que internalizamos de querer a liberdade. De sofrer com as nossas próprias noias, de ter que ainda encarar pessoas vivendo uma realidade paralela à nossa, plenas nesse movimento de “está tudo bem” e “temos muito o que aprender com a quarentena”. A obra espanta por esse fator profético, por sintetizar muito bem o que enfrentamos antes mesmo da pandemia acontecer. E apesar das falhas e por ser imensamente tedioso, é inegável que ele causa um grande impacto em nós.

NOTA: 7,0

País de origem: Brasil
Ano: 2021
Disponível: Telecine Play
Duração: 105 minutos
Diretor: Iuli Gerbase
Roteiro: Iuli Gerbase
Elenco: Renata de Lélis, Eduardo Mendonca

Crítica: The White Lotus

Os comedores de lótus

Quando uma produção é lançada sem alarde e, aos poucos, ganha sucesso pelo o boca a boca, algo de muito incrível tem ali. Às vezes é puro hype, outras, é o nascimento de algo original, digno da atenção da recebe. “The White Lotus” é, de fato, uma das séries mais brilhantes do ano. É uma sátira sagaz ao privilégio branco e há genialidade em cada pequeno detalhe que nos entrega.

Toda a ação acontece em um paradisíaco resort hotel no Havaí. A trama se concentra nas relações de um grupo de visitantes ao local e nos percalços que esses ricos surtados enfrentam por ali. A escolha do elenco é certeira e facilmente nos envolvemos com esses excêntricos personagens. A grande verdade é que todos ali estão em sintonia e todos revelam uma faceta que desconhecíamos. Seja dos jovens que passamos a ver com mais respeito como Sydney Sweeney, Alexandra Daddario e Fred Hechinger, como os mais experientes que renascem em cena. Murray Bartlett, Steve Zahn, Jennifer Coolidge e Connie Britton estão impecáveis. É muito bom ver um show onde nenhuma dessas peças estão fora do lugar e todos embarcam na bizarrice das situações apresentadas.

“The White Lotus” firma Mike White com um roteirista a se prestar mais atenção. Seu texto é fascinante, guiando o show com ritmo e uma originalidade que encanta. Tudo nos causa um desconforto, um riso nervoso, mas ao mesmo tempo nos deixa imensamente hipnotizados por seu sedutor universo. A trilha sonora composta por Cristobal Tapia de Veer, com seus sons tribais, invade nossa mente e nos faz sentir tão surtados quanto seus personagens. A trama caminha como se algo fosse explodir a qualquer instante, nos deixando vidrados por seus imprevisíveis desdobramentos.

Insanamente divertido, o roteiro provoca nessa sátira pungente ao privilégio branco e aos homens héteros castrados pela cultura do cancelamento. Os diálogos são geniais e nos deixam constrangidos ao dar voz à esta elite que hoje se sente tão excluída e por tudo o de mais bizarro que sai de suas mentes. São indivíduos que se sentem injustiçados pelos erros históricos dos brancos, incomodados por essa nova recentralização. “The White Lotus” faz rir na mesma medida que incomoda, assusta porque é desconfortavelmente atual.

Esses hóspedes afortunados são os lotófogos, os comedores de lótus. Na mitologia grega, ao digerirem a flor se colocam em estado alterado, distantes dos problemas reais do mundo. Mas esses lótus não são deles, eles se apropriaram. E não é roubo se você sente que já é seu. Se toda sua vida lhe ensinaram que é seu. Todas as portas estiveram abertas, nada lhe foi negado. Por mais distintos que sejam ali na tela, todos fazem parte de uma mesma tribo. Confortáveis demais em suas posições privilegiadas e fragilizados por essa nova hierarquia que emerge.

Existe inteligência nas entrelinhas de “The White Lotus” é reflexões que ficam muito tempo depois que a minissérie termina. É um espetáculo de ver e eu, com toda a certeza, teria mais fôlego para devorar muito mais do que só 6 episódios.

NOTA: 9,5

País de origem: EUA
Ano: 2021

Disponível: HBO Max
Duração: 358 minutos / 6 episódios
Diretor: Mike White
Roteiro: Mike White
Elenco: Murray Bartlett, Alexandra Daddario, Jake Lacy, Jennifer Coolidge, Steve Zhan, Connie Britton, Sydney Sweeney, Fred Hechinger, Molly Shannon

Crítica: A Última Carta de Amor

As relações de um outro tempo

Enquanto assistia “A Última Carta de Amor”, título recente da Netflix, fiquei me questionando em como filmes como esse se tornaram raridade. Sim, talvez ele tivesse feito um sucesso enorme lá nos anos 2000, mas que bom que ele veio agora, quando o cinema pouco fala sobre paixão. Baseado no livro de Jojo Moyes, temos aqui algumas ideias recicladas de obras como “Cartas para Julieta”. Ainda que nada seja muito novo, é aquele clichê bem contado, que funciona pelo capricho da produção e o charme irresistível do elenco.

A graça da história é que ela acontece em dois tempos diferentes. No presente, a jornalista Ellie (Felicity Jones), ao buscar arquivos na editora em que trabalha, descobre antigas cartas correspondidas entre dois jovens apaixonados e decide pesquisar o que aconteceu com essa história de amor não concretizada. Essas cartas são da década de 60, quando Jennifer (Shailene Woodley), que infeliz no atual casamento, passa a flertar com o escritor Anthony (Callum Turner).

Ainda que a narrativa flua bem entre as épocas diferentes, é inegável a atenção dada à trama do passado, que se torna muito mais instigante, principalmente à química existente entre Shailene e Callum, que estão ótimos em cena. No presente, não apenas a relação entre a jornalista e o arquivista não convence como falha ao transformarem os dois em alívio cômico. No mais, é válido essa reflexão sobre o papel da comunicação nas histórias de amor. Hoje, cartas viraram relíquias de um registro fascinante do tempo. Neste mesmo presente, dependemos de mensagens vazias, emojis e tiques azuis para manter contato com alguém que desejamos mas pouco sabemos como dizer, como se expressar.

A direção é de Augustine Frizzell, responsável pelo piloto da série “Euphoria”. Envolvente e sedutor, ela entrega um produto charmosíssimo, com belos figurinos e locações. É raro porque não tem vergonha do clichê, do romance e abraça tudo isso com muito cuidado e carinho por sua bela história de amor. Me deixou com um sorriso no rosto e um sentimento muito bom no peito.

NOTA: 8,0

País de origem: EUA
Ano: 2021

Título original: The Last Letter From Your Lover
Disponível: Netflix
Duração: 110 minutos
Diretor: Augustine Frizzell
Roteiro: Esta Spalding, Nick Payne
Elenco: Felicity Jones, Shailene Woodley, Callum Turner, Nabhaan Rizwan, Joe Alwyn

Crítica: Atypical (quarta temporada)

Do atípico ao genérico

A triste história de um programa que tinha tanto a dizer mas preferiu ser o mais genérico possível.

Se na Netflix temos os casos das séries canceladas que não possuem nem a chance de se despedir decentemente, também temos aquelas que não souberam aproveitar a oportunidade. Recentemente tivemos “Special” e agora “Atypical”. Os roteiristas, em nenhum momento, lidam com o fato de que esta é a última chance de consertar aqueles tantos erros cometidos nas temporadas passadas. Seja por esse viés machista com que passou a desenhar este drama familiar, onde a mãe está sempre nesse lugar de inferioridade, sempre precisando se redimir de algo que nem o público entende. Seja por não mais explorar o espectro que seu protagonista se encontra. A verdade é que “Atypical” está sempre na tangente, sempre evitando falar sobre temas do mundo real ou de assuntos que tirem seus personagens desses limites que foram estabelecidos. O que antes era uma série doce que tratava com humor e sensibilidade um assunto tão delicado, se prolonga aqui com tramas tolas que servem apenas para termos ainda mais raiva dos personagens e que até, especificamente, o último episódio, não os leva para canto nenhum, rodando em um ciclo tedioso, revivendo os mesmos e mesmos conflitos.

Nesta última temporada, focaram bastante na jornada de Casey e foi simplesmente insuportável ter que acompanhar seu relacionamento com Izzie. Todo episódio, algum conflito chato para dificultar a vida das duas, que estão sempre se desencontrando, se desculpando. Enquanto alguns personagens somem aqui, como Evan que fez tanta falta ou Sharice, que até pouco tempo atrás, era a melhor amiga da protagonista, outros se mantém por razões que ninguém entende como Paige e até mesmo a Izzie. Zahid, por sua vez, foi um ótimo alívio cômico aqui, revelando a carismática presença de Nik Dodani.

A quarta e última temporada de “Atypical” é uma despedida amarga por nunca valorizar seu peculiar universo e seus bons personagens, caindo no lugar comum, naquele campo genérico que engloba qualquer outra série da Netflix. Ao menos o último episódio comove, quando todos seus excêntricos indivíduos encaram aquele medo da mudança, de que é preciso evoluir, seguir uma nova direção. Foi difícil se importar com alguma coisa narrada aqui – inclusive a obsessão de Sam por pinguins e Antártica – mas pelo menos ver o fim nos bate aquela sensação boa de ciclo sendo encerrado.

NOTA: 6,0

País de origem: EUA
Ano: 2021
Disponível: Netflix
Duração: 302 minutos / 10 episódios
Criação: Robia Rashid
Roteiro: Robia Rashid, Michael Oppenhuizen
Elenco: Jennifer Jason Leigh, Keir Gilchrist, Brigette Lundy-Paine, Michael Rapaport, Nik Dodani, Jenna Boyd