Crítica: Val

entre o homem e o personagem

Não sou muito de falar de documentários aqui no site, mas esse eu senti que precisava. “Val” me acertou em cheio. Me fez sentir algo que não havia sentido esse ano diante de uma obra. Com uma dor profunda no peito, terminei de vê-lo sem estruturas, tentando digerir e tentando entender o porquê de tudo aquilo ter me afetado tanto.

“Val” nasce para ser uma cinebiografia do ator Val Kilmer, mas vai muito além daquela trajetória que já conhecemos de fama, ascensão e fracasso. O ator passou a ser notado lá nos anos 80 com “Top Gun” e alcançou o auge nos anos 90 ao interpretar o Batman. Era um jovem apaixonado por cinema e por onde andava carregava consigo uma câmera na mão. O documentário, então, impressiona pelo imenso acervo, entregando um material rico, não apenas dos bastidores dos filmes – que por si só já é incrível – mas principalmente de uma vida. “Val” é um registro de uma história, nos permitindo mergulhar em sua intimidade, nas suas mais dolorosas lembranças. É o registro do tempo, do envelhecimento, das perdas. Do ídolo rejeitado.

Val Kilmer se desnuda por completo, retirando todo o glamour hollywoodiano e revelando sua mais profunda verdade. Hoje, sofrendo as sequelas de um câncer na garganta, fala com a ajuda de um aparelho. Logo quando ele perdeu a fala, entendeu que era a hora de contar sua história. Existe poesia em todas essas escolhas e a forma como o documentário vai narrando sua vida. Essa vida que se mescla com a ficção, dele vivendo da fantasia tanto quanto vive da realidade.

Nós, enquanto público, só vemos a trajetória do fracasso. Da carreira que não deu certo. O que existe além daquilo que julgamos? O que é ” dar certo”, “dar errado”? A vida de todo mundo é um conjunto de traumas, frustrações e vitórias, sem ordem fixa. A obra distorce essa visão que temos do ator e emociona ao falar sobre o homem que viveu por sua paixão pelo cinema, que ganha a vida preso aos anos de glória e tentando se manter firme, mesmo com tudo que vai perdendo ao longo do caminho. É lindo os instantes em que ele revisita os locais de filmagem e é reconhecido por suas conquistas. A montagem, que alterna entre passado e presente, é brilhante e nos faz adentrar ao seu universo com coração. A trilha, a narração, tudo nos leva a uma jornada emocional de peso, de grande impacto.

“Val” é muito maior do que pretende ser. É um documentário poderoso, imenso. O final vai se alcançando e vem o nó na garganta, uma dor no peito. Uma emoção que nos inunda diante de tanto sentimento exposto. Nessa história que se confunde entre homem e personagem, aconteceu que, ao contar sua verdade, Val Kilmer entregou o grande momento de sua carreira. Existe poesia nesse seu relato de sonhos. Aquele que desiste de viver da ilusão, só lhe restará o peso da realidade. Pode até continuar respirando, mas terá deixado de existir.

NOTA: 10

País de origem: EUA
Ano: 2021
Disponível: Prime Video
Duração: 109 minutos
Diretor: Leo Scott
Elenco: Val Kilmer

Crítica: A Despedida

Deixar levar

Remake do dinamarquês “Coração Mudo” de 2014, “A Despedida” conta com o mesmo roteirista do original, Christian Torpe. Trata-se de uma narrativa comum, mas guiada com um imenso cuidado. Aqui, a matriarca Lily, interpretada pela hipnotizante Susan Sarandon, decide reunir sua família desestruturada para se despedir. Isso porque ela sofre de uma doença degenerativa e acredita que a melhor alternativa seja anteceder seu fim.

Um drama familiar dos bons, que coloca esses personagens se confrontando dentro de um único cenário: uma casa isolada na praia, sem qualquer interferência do mundo externo. É um reencontro de pessoas desajustadas que nitidamente se evitam, mas ao mesmo tempo se fortalecem, precisam uma da outra. O texto é bastante dinâmico ao narrar essas relações e emociona ao falar sobre despedidas, sobre o iminente fim. Comove na simplicidade, sem exagerar na dramaticidade da situação. A sequência onde a mãe distribui presentes para cada um em uma mesa de jantar já é um dos meus momentos favoritos do ano. Uma troca de afeto, lembranças e agradecimento pela existência de cada um. Existe uma história inteira que não tivemos acesso ali , mas sentimos diante da ternura expressa em cada ator. É lindo.

É assim que o diretor Roger Michell, de Um Lugar Chamado Notting Hill, consegue extrair o melhor de todo o elenco. Aliás, os homens aqui surgem como suporte, como apoio emocional dessa jornada enfrentada pelas mulheres. Sarandon, Kate Winslet e as subestimadas Mia Wasikowska e Lindsay Duncan brilham. Roger entrega, ainda, cenas delicadamente organizadas, simétricas, ilustrando esse controle da protagonista, seu plano orquestrado e até mesmo esse teatro dos familiares, mantendo uma pose e sorriso que nem sempre é o que existe por dentro.

Um dos instantes mais comoventes é quando Lily conversa com seu neto e ele diz sobre seus planos futuros. Ela se sente privilegiada por saber antes de todos e dor por não poder presenciar sua evolução. Dor, porque para todo seu legado, nada pode deixar. A vida, ao fim, diferente do que alguns filmes tentam nos ensinar, talvez não tenha nenhuma lição valiosa, um padrão de sucesso que precisa ser repassado para aqueles que ficam. A vida é um jogo de improviso. A morte é a única certeza, o resto é deixar levar, seguir como a música toca.

NOTA: 8,5

País de origem: EUA, Reino Unido
Ano: 2019

Título original: Blackbird
Disponível: Paramount +, NET Now
Duração: 97 minutos
Diretor: Roger Michell
Roteiro: Christian Torpe
Elenco: Susan Sarandon, Kate Winslet, Mia Wasikowska, Sam Neill, Rainn Wilson, Lindsay Duncan

Crítica: Pleasantville – A Vida em Preto e Branco

A cor dos novos tempos

Uma preciosidade presente no catálogo da HBO Max e que não tem o reconhecimento que merece. Que grata surpresa me deparar com esta belíssima produção de 98, que tão bem dialoga com o nosso tempo presente. Um filme que, ao falar justamente sobre uma sociedade ultrapassada, tão bem entendeu o futuro.

Escrito e dirigido por Gary Ross, que tempo depois levaria aos cinemas Jogos Vorazes, ele cria aqui uma distopia com uma bela crítica, através de um texto leve e apaixonante, que consegue causar impacto e trazer discussões relevantes, mais de vinte anos depois. Na trama, os irmãos David (Tobey Maguire) e Jennifer (Reese Witherspoon), são transportados para uma série de TV em preto e branco, Pleasantville, no qual o jovem garoto sempre foi aficionado. Ali dentro, eles precisam agir como se fossem personagens daquela cidade fictícia, no entanto, quando situações fogem do controle, aquele mundo passa a seguir uma nova ordem, ganhando vida própria. Ganhando, enfim, cor.

O roteiro de Gary Ross é fascinante e nos faz adentrar a esse universo fictício e a vibrar por seus belos acontecimentos. A vida em “Pleasantville” é perfeita e há algo nostálgico nesses personagens que facilmente nos lembram séries antigas de TV. É brilhante em como, aos poucos, com a chegada desses dois jovens do mundo real, esse universo vai se transformando, justamente quando eles trazem informações de que existe vida fora dali, sentimentos além daqueles que já conhecem. Que a vida pode ser mais do que viver aquela rotina repetitiva e episódica. Brilhante, então, em como a direção de arte vem como parte crucial da narrativa. O surgimento da cor causa espanto naquela comunidade e passa a dar início a uma revolução. Tudo é muito bem cuidado e ilustrado pelo fantástico visual, que segue como um sonho do qual não queremos acordar.

Claro que a crítica da obra seria mais eficaz se tivéssemos um elenco mais diversificado. Alguns discursos teriam ainda mais poder. Ainda assim, temos as ótimas presenças de Tobey Maguire, Reese Witherspoon, Joan Allen e Jeff Daniels. Algo que me incomoda, também, é seus instantes finais e como se conclui essa aventura. O destino dos protagonistas quebra bastante a lógica que havia criado até ali.

Em “Pleasantville” vemos uma sociedade conservadora sendo contestada. Pessoas firmes em suas ideologias ultrapassadas, que enfatizam a continuidade e não a alteração. Que definem o que é agradável e rejeita o que para elas não é. É curioso como aqueles que querem tanto manter tudo como sempre foi são aqueles que estão em uma posição de poder, líderes patriarcais que temem a liberdade de seus subordinados. Neste universo, a cor representa um novo olhar, a evolução que tanto precisamos. O preto e branco confunde nossa visão, é limitado, nos impede de ver a pluralidade das pessoas, a imensidão de cores que somos feitos. Tem muita gente que ainda luta por viver no preto e branco. E quanto mais os anos se passam e mais as gerações evoluem, o mundo ganha a cor que precisa, que melhor se adequa aos novos tempos.

NOTA: 9,5

País de origem: EUA
Ano: 1998

Título original: Pleasantville
Disponível: HBO Max
Duração: 124 minutos
Diretor: Gary Ross
Roteiro: Gary Ross
Elenco: Tobey Maguire, Reese Witherspoon, Joan Allen, Jeff Daniels, William H.Macy, Paul Waker