A farsa do bom cristão

Representante da Polônia no Oscar 2020 na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, “Corpus Christi” vem para questionar o cristianismo e a hipocrisia dos cidadãos de bem que pregam a religião. Provavelmente seu aparente tema tenha afastado parte de público, mas é um produto necessário, que surpreende pelas reflexões que deixa pelo caminho e dialoga tão bem com tantas culturas, inclusive a nossa.

O filme é incrivelmente bem escrito e já em seus primeiros minutos nos revela sua potente premissa, que jamais perde o fôlego ou interesse. Somos apresentados à Daniel, um jovem que enfrenta uma transformação espiritual em um reformatório e sonha em ser padre, no entanto, sua ficha criminal o impede de realizar isso. Assim que ele é levado para trabalhar em uma serralharia em uma região distante, Daniel renega seu destino e, vestindo sua batina, acidentalmente ele passa a assumir uma paróquia do local. Sua farsa, porém, acaba transformando a relação dos moradores com a religião, com o luto e perdão.

É muito curioso e intrigante toda a jornada do protagonista. Enquanto que no começo, Daniel parece um jovem perdido em busca de encrenca, logo ele assume um papel de grande importância ali, confrontando tantos pensamentos e tradições daquele local. Ainda que ele seja um parasita, passamos a questionar se aquele, de fato, não deveria ser o seu lugar. Que a fé dele não é menos valida que a de ninguém. Ele que vem de uma realidade tão distante, traz uma nova e necessária perspectiva, uma renovação para atos tão calculados de uma religião estagnada. Sua adoração é espontânea e isso acaba gerando uma série de embates que ganham proporções grandiosas na tela. É fascinante toda a discussão que o protagonista traz sobre perdão, logo que aqueles cidadãos tão corretos destilam palavras de ódio quando se veem como donos da justiça e da razão. Eles vivem de uma bondade seletiva, que julga o resto, que exclui. A farsa, ironicamente, deixa de ser a de Daniel, mas de toda aquela comunidade que assume o papel de bom cristão.

Quando o passado do protagonista é revelado, “Corpus Christi” ganha uma camada ainda mais profunda. O longa nos coloca no papel de julgadores, de refletir se deve existir redenção ao jovem criminoso. Existe transformação? Ele merece encontrar seu lugar de paz? O filme termina e nos deixa desolados por sua resolução, longe de ser previsível e tão doloroso quanto realista. Daniel carrega a culpa, o peso de suas escolhas, e mesmo que haja bondade naquele coração, ele está inserido em uma realidade que não lhe dá chances, precisando encarar seu próprio inferno na Terra. Longe do maniqueísmo, longe das tantas definições pregadas pela igreja, a obra expõe a humanidade existente nesses grandes personagens, tão falhos, tão corruptíveis. Qual deles merece a salvação é uma questão cruel e que, dolorosamente, acaba tendo uma resposta ao fim. É a mesma resposta e o mesmo senso de justiça aplicado pela hipócrita fé cristã.

Esta poderosa jornada não teria o mesmo impacto sem a grande performance do ator Bartosz Bielena. Há muitos sentimentos expostos por seu olhar e que nos faz ter empatia por seus passos. Me encanta muito também a relação de seu personagem com a jovem Marta, em como eles se entendem no meio de pensamentos e crenças tão distantes das deles. “Corpus Christi” me pegou de surpresa, por todas essas reflexões e temas tão bem debatidos por este brilhante roteiro. Existe coragem em seus discursos, que vem não para questionar a fé ou diminuir o valor do cristianismo. Vem para indagar, nos fazer olhar para a hipocrisia. Nos fazer olhar para a farsa. Não a farsa do jovem que se faz de padre, mas da farsa que vemos todos os dias, da de pessoas que usam da fé como discurso de ódio. Desta “religião” sem nenhum senso de bondade, igualdade e perdão.

NOTA: 9,5

  • País de origem: Polônia, França
    Ano: 2019
    Duração: 115 minutos
    Título original: Boze Cialo
    Diretor: Jan Komasa
    Roteiro: Mateusz Pacewicz
    Elenco: Bartosz Bielenia

Deixe uma resposta