O olhar feminino

Penso que filmes como “Huesera” não seriam possíveis sem uma mulher na direção. Muito além do terror sobrenatural, temos um relato muito íntimo sobre ser mãe. Talvez seus discursos causem reprovação de muitos, mas vejo muita coragem neles. Vejo uma honestidade que só o olhar feminino poderia traduzir. Michelle Garza Cervera, recentemente indicada ao prêmio de Direção estreante no Gotham Awards, se inspira no folclore mexicano para desenhar na tela um conto revelador sobre a solidão e o peso da maternidade.

A Lenda de Huesera traz a história de uma mulher de aspecto animalesco, que na obsessão por se tornar mãe, reúne ossos de animais mortos para construir um filho para si. Essa entidade é a que passa a perseguir nossa protagonista após a notícia de que está grávida. Valeria, na casa dos 30 anos, se vê nessa responsabilidade de ter uma família. Ter um homem e um filho dentro de casa. O que de início parecia um sonho se concretizando, ela passa a ter estranhas visões que a levam a viver uma experiência traumática e transformações em seu próprio corpo.

Muitos filmes de terror colocam a mulher nesse lugar de vulnerabilidade e impotência. De terem suas palavras questionadas diante de alguma suspeita ou alucinação. Dito isso, uma obra como “O Bebe de Rosemary” ainda segue extremamente atual quando coloca sua protagonista grávida enfrentando uma jornada solitária de contestações. Aqui, o assustador está mais do que na criatura sobrenatural que persegue, está nas ações de uma sociedade que naturaliza o aprisionamento da mulher. Gradualmente, Valéria vai perdendo um pouco mais de si. Sua vocação, seus hobbies, seus verdadeiros desejos. Tudo vai sendo silenciado ao ponto dela não ser nada mais do que um recipiente. Décadas depois do clássico de Polanski, esse retrato ainda é o reflexo de nosso mundo e o terror se encontra justamente nesse desespero da personagem por não ser compreendida, por nunca se encaixar – seja pelos olhos do marido ou da própria família – dentro das expectativas que eles criaram.

A diretora Michelle Garza Cervara cria instantes aterrorizantes e visualmente bastante criativos. Tem saídas inteligentes que afastam constantemente “Huesera” da obviedade. Ela sabe como introduzir símbolos intrigantes dentro de suas boas metáforas, nos fazendo construir teorias na cabeça e refletir mesmo depois que acaba. Ainda que lide com diferentes vertentes do gênero, o filme ganha mesmo no terror psicológico, ao se aprofundar nas transformações corporais e mentais da protagonista, defendida com garra por Natalia Solián. O texto é ousado em navegar por questões bastante delicadas acerca do universo feminino e em toda essa dolorosa jornada de se tornar mãe. A última cena é poderosa e revela o quanto o cinema ganha quando temos mulheres à frente de projetos como esse.

NOTA: 8,5

País de origem: México, Peru
Ano: 2022
Titulo original: Huesera: The Bone Woman
Duração: 97 minutos
Diretor: Michelle Garza Cervera
Roteiro: Michelle Garza Cervera, Abia Castillo
Elenco: Natalia Solián, Alfonso Dosal, Mayra Batalla, Mercedes Hernández

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