Crítica | Noite Passada em Soho

deslumbrante e irresponsável

Os retornos de Edgar Wright (Todo Mundo Quase Morto, Baby Driver) e sua mente criativa sempre causam curiosidade. Desde que soube que ele estava envolvido em um terror psicológico fiquei na expectativa e, por isso, chegar aqui é tão decepcionante. “Noite Passada em Soho” é esteticamente sublime, mas peca em sua mudança de tom e sua reviravolta contraditória.

Muitos de nós já sonhou em viver em outra época. É com essa ideia que conhecemos nossa protagonista Eloise, muito bem defendida por Thomasin McKenzie. A jovem se muda para Paris para estudar moda e logo se vê deslocada nesse universo, onde sua realidade nunca parece o bastante. Aficionada pelos anos 60, ela é magicamente transportada para a época enquanto dorme, vivenciando a jornada de Sandie (Anya Taylor-Joy), uma estrela em ascensão que cai nas garras de um agente ganancioso.

A conexão da protagonista vai além da época em que passa a viver, se identificando, ainda, com os receios daquela desconhecida, vítima de um mundo dominado por homens predadores. É assustador assistir os sonhos de Sandie sendo destruídos por questões ainda muito presentes em nossa sociedade. Desta forma, Edgar Wright, que até então abraçava a beleza da nostalgia, encontra o terror. Uma pena, porém, quando esta transição cause tanta estranheza. De repente, quando menos esperamos, aquele universo sedutor e mágico se transforma em um filme vergonhoso de zumbi. Chega a ser triste ver aquela produção tão intrigante tomar um rumo tão desastroso e imensamente perigoso.

Por um breve momento, “Noite Passada em Soho” parece ter boas intenções. No entanto, falta muita noção nesse roteiro que acreditou que, ao fim, colocar homens abusadores como vítimas era uma boa ideia. É nesse instante que a obra entra em contradição consigo mesma, entregando uma resolução irresponsável e de extremo mau gosto.

Gosto muito do que o filme apresenta lá no começo e, até sua metade, somos presenteados com uma produção fantástica. Seja pelos belos figurinos, a trilha musical imersiva e até a reconstrução deslumbrante dos anos 60. A montagem que faz com que as atrizes dividem o mesmo espaço em tempos diferentes é brilhante. E claro, Anya Taylor Joy tem algo que nos hipnotiza e facilmente somos levados a viver esse mundo novo ao lado da protagonista.

“Noite Passada em Soho” soa como um grande desperdício de elenco e de premissa. Edgar Wright segue ainda muito preocupado com sua estética, mas sempre parece abandonar o barco no ato final e é algo que também sinto de Baby Driver, que assim como esse, também termina muito mal. Acaba valendo por ver o trabalho de duas atrizes em ascensão e pela produção deslumbrante. Mas o tombo vem e vem com força.

NOTA: 6,0

País de origem: EUA, Reino Unido, Irlanda do Norte
Ano: 2021
Título original: Last Night in Soho
Duração: 116 minutos
Diretor: Edgar Wright
Roteiro: Edgar Wright, Krysty Wilson-Cairns
Elenco: Thomasin McKenzie, Anya Taylor-Joy, Matt Smith, Diana Rigg, Terence Stamp

Crítica: Relíquia Macabra

O tenebroso ciclo da vida

Alguns temas são difíceis de serem tratados no cinema e por isso é tão raro vê-los em pauta. Por muito tempo senti realmente falta de obras que falassem sobre Alzheimer e tivessem a sensibilidade necessária para falar do assunto de forma responsável e necessária. Se há pouco me deparei com a grandeza de “Meu Pai”, agora me deparo com “Relíquia Macabra”. Existe coragem em usar do terror para expor algo tão íntimo e doloroso. O terror é aquilo que evitamos ver, evitamos sentir. Interessante, então, nesse sentido, em como a jovem cineasta Natalie Erika James explora o gênero para revelar aquilo que tanto tememos, mas inevitavelmente enfrentamos. O envelhecimento e o esquecimento da nossa própria existência.

Produzido por Jake Gyllenhaal e com produção executiva dos Irmãos Russo, o longa coloca em cena três mulheres de diferentes gerações, que são confrontadas por esse tenebroso ciclo da vida. Quando a avó, que já apresenta sinais de demência, desaparece, a filha e a neta retornam para a casa no intuito de encontrá-la e compreender o que aconteceu. Como um bom terror exige, tudo é mais sinistro do que parece. E acredito que esta seja um pouco sua falha. Mesmo com um material tão rico, às vezes, opta pelo susto óbvio para ser mais acessível. No entanto, isso não diminui seu impacto e beleza de suas intenções quando são reveladas.

Em “Relíquia Macabra”, a diretora cria uma atmosfera de tensão que nos mantém intrigados. As cores frias, a escuridão das cenas, a bagunça daqueles pequenos espaços. Tudo causa um certo incômodo e, por fim, ilustram bem os sentimentos daquelas mulheres e da confusão e medo que é ter que lidar com uma situação tão delicada, sem precedentes. O corpo da avó é como as estruturas em decomposição da casa, se diminuindo, sendo engolida pelo tempo. Poderosos os instantes em que ela ingere suas fotografias ou quando, dentre tantos bilhetes que escreve para se recordar de atos corriqueiros, é onde anota sua maior indagação: se ainda é amada.

A verdade é que não me recordo a última vez em que um filme de terror me emocionou. Provável porque vivo parte dessa dor que o filme relata dentro de casa, parte desse medo diante do incerto, diante desse ciclo que um dia pode me alcançar. O final me levou às lágrimas diante do poder de suas imagens e do belíssimo acontecimento que encerra essa jornada. Como é difícil despir o que ontem era inteiro, ter que encontrar a força para cuidar de alguém se foi, mas ainda está ali. Como é difícil amar o que você não mais reconhece.

NOTA: 8,0

País de origem: Austrália, EUA
Ano: 2020
Título original: Relic
Disponível: Telecine Play
Duração: 85 minutos
Diretor: Natalie Erika James
Roteiro: Natalie Erika James
Elenco: Emily Mortimer, Bella Heathcote, Robyn Nevin

Crítica: A Maldição da Mansão Bly

A segunda temporada da série antológica da Netflix vem com um grande peso nas costas: manter a qualidade oferecida na fantástica “A Maldição da Residência Hill”. É natural que essa expectativa exista e, infelizmente, “Mansão Bly” não é apenas inferior à sua antecessora. Sou mais radical nesse caso…não chega aos pés.

Inspirada levemente na obra clássica de Henry James, “A Volta do Parafuso”, que por sua vez já foi adaptada outras vezes para a tela como em “Os Inocentes” (1961), “Os Outros” (2001) e mais recentemente em “Os Órfãos” (2020). Acompanhamos a chegada de uma tutora em uma mansão vitoriana para cuidar de duas crianças órfãs. Logo percebemos que algo de assombroso ocorre dentro daquelas paredes e a série, aos poucos, se propõe a dar suas respostas, que nunca surgem de forma clara ou muito óbvia. O que é ótimo, visto que nosso olhar já vai preparado por se basear em um material tão conhecido, e o roteiro, com toda sua liberdade narrativa, se arrisca a trazer novos detalhes, quase como se expandisse esse universo criado por James. No entanto, tudo o que a trama nos oferece de “novo” é mal trabalhado e pouco causa interesse.

A série encabeçada por Mike Flanagan, erra mão ao sair do campo da sugestão, tão brilhantemente proposto na obra original. O roteiro busca saídas tolas como respostas, como dar vida a Dama do Lago ou o insuportável Peter Quint com seus planos vilanescos. Toda essa narrativa que cria para justificar seus bons mistérios ganha traços de um novelão melodramático e mal conduzido, inserindo, ainda, tramas de amor tão forçadas que são dificílimas de engolir. A ideia de construir uma narrativa através de flashbacks e fluindo entre diferentes tempos, funciona quando se tem um material rico a ser explorado, o que não é o caso. A ida e vinda de uma trama tão linear como a que oferece, só transforma o show em algo repetitivo e cansativo, revelando de forma maçante os mesmos eventos.

Falta, principalmente, carisma aos personagens que guiam tudo isso. Não há como torcer, vibrar ou sofrer por ninguém que nos apresenta, tamanha a confusão e enrolação que entrega. Me afasta, ainda, as tantas frases de efeito, que surgem como se cada situação da trama viesse pelo simples ato de deixar uma lição de moral. Os indivíduos ali tem sempre um ensinamento calculado por trás de cada ação. É chato, é pedante. Ao menos, confesso, gosto do elenco, em especial as crianças e a hipnotizante presença de T’Nia Miller como governanta. Victoria Pedretti, por sua vez, tem potencial, mas sua performance é incômoda. Seus tantos trejeitos e expressões de boa moça destoam de todo o resto.

Vale destacar a produção, que segue ainda mais cuidadosa nos detalhes. O terror é construído pela atmosfera e pelos elementos que ilustram cada momento. Das cores opacas e frias – muito presentes na filmografia de Flanagan – à iluminação que traz uma áurea fantasmagórica para suas cenas.

“Não é uma história de fantasmas, mas uma história de amor”. Enquanto que a primeira temporada conseguiu com brilhantismo trilhar entre o drama e o terror, os roteiristas aqui falham nesta missão, onde a série não funciona em nenhum dos tantos gêneros que tenta abraçar. Terror não é feito só de sustos e é fantástico quando uma obra entende isso. Mas essa saída ousada não transforma “A Maldição da Mansão Bly” em algo bom, quando o que oferece além da tensão é tão pobre. O que antes era uma produção promissora na Netflix, morre cedo.

NOTA: 6

  • País de origem: EUA
    Ano: 2020
    Título original: The Haunting of Bly Manor
    Disponível: Netflix
    Elenco: Victoria Pedretti, T’Nia Miller, Oliver Jackson-Cohen, Henry Thomas

Crítica: O Chalé

A pressão do parafuso

“The Lodge” é um filme de terror que tem ganhado fama, aos poucos, aqui no Brasil. É o mesmo caminho que a dupla de diretores e roteiristas, Veronika Franz e Severin Fiala, enfrentou em 2014 quando lançaram “Boa Noite, Mamãe”, que surgiu tímido mas não demorou até ganhar reconhecimento. O trabalho anterior deles foi definitivo para o que hoje é realizado dentro do gênero e este retorno vem para reafirmar a grande habilidade deles em construir obras perturbadoras e de forte impacto. Alguns elementos voltam como o fato da trama se concentrar na relação conturbada entre duas crianças e uma enigmática figura materna. Além, é claro, a interessante construção do roteiro, que tem a capacidade de nos confundir e de driblar nosso olhar para a verdade.

O começo do filme é lento mas é crucial para revelar sua potente intenção. A protagonista Grace (Riley Keough) demora a se revelar, propositadamente. Ela é capturada de costas ou através de vidros esfumaçados. Essa escolha é interessante porque nos guia a criar uma imagem dela pelo olhar e impressão de outras pessoas. A julgamos previamente, não apenas por seu passado mas por ela ser a representação daquilo que, teoricamente, destruiu uma família. Grace está noiva de Richard, cujo os dois filhos pequenos, Aidan e Mia acabaram de perder a mãe que se suicidou. Ainda abalados pela perda, os dois são obrigados a se aproximar da nova madrasta no feriado de Natal, dentro de um chalé em uma região remota e afastada. O filme, então, nos leva a enfrentar esta desconfortável relação entre os três. A tensão piora quando estranhos eventos passam a acontecer ali, levando à protagonista a questionar sua fé e reviver as escolhas de seu passado.

Veronika Franz e Severin Fiala entregam sequências visualmente bem interessantes, capturando seus ambientes por planos bem abertos e até mesmo vertiginosos, construindo uma atmosfera de tensão e constante desconforto. É ainda curioso o uso da casa de bonecas, que recria com perfeição o chalé e nos leva a este sentido dúbio sobre o que é invenção, manipulação ou reconstrução da realidade. Quando o roteiro entrega sua primeira reviravolta, ele bifurca suas interpretações e passamos a questionar o que, de fato, está acontecendo ali. Até que ponto aquilo é real ou alucinação. Os roteiristas apostam em nossas lembranças, até mesmo de outros filmes, para criar um jogo audacioso e um tanto quanto divertido. Eles nos enganam porque sabem onde já fomos enganados outras vezes. Com fortes referências à obra clássica de Henry James, “A Volta do Parafuso” – que serviu de base à muito do que conhecemos no terror dentro do cinema – somos manipulados a enxergar algo através desses símbolos que eles usam, inclusive o próprio nome da protagonista, Grace, logo nos remete à personagem de Nicole Kidman em “Os Outros”, talvez a mais memorável adaptação do conto e que muito se assemelha aos acontecimentos daqui. O grande brilhantismo vem quando ele quebra essa nossa previsão e entrega algo mais palpável, surpreendente e ainda assim, assustador.

A expressão “a volta do parafuso” diz muito sobre o filme também. Ainda que em português não faça muito sentido, o termo é uma metáfora para aquilo que está ruim e pressionamos para ficar pior. As crianças aqui usam da fraqueza de Grace para construir um jogo perverso, a levando a enfrentar seus próprios fantasmas, se afundando dentro de si. O terror psicológico vem justamente dessa mente desestabilizada dela e desta relação que tem com a fé, deste pavor que sente diante dos símbolos religiosos que repreendem seus pecados. Esta perigosa oscilação da personagem é muito bem representada pela atriz Riley Keough, que entrega um de seus melhores momentos no cinema até agora. O filme, no entanto, perde um pouco pela pressa de se revelar, não nos permitindo aproveitar dessa tensão que se constrói e de suas próprias reviravoltas. O final, aliás, é bastante caótico e não explora todo o potencial que tinha, entregando suas revelações de forma fria, longe do climax que poderia alcançar. Sinto falta de conhecer um pouco mais sobre as crianças e entender melhor as motivações delas também. O longa carece ainda de originalidade, desde sua trilha sonora com ruídos à condução dos diretores, tudo nos remete à um cinema ainda muito recente como “Hereditário”, “O Sacrifício do Cervo Sagrado” e outras obras mais potentes do terror moderno.

Apesar das falhas, “The Lodge” funciona e nos deixa bastante atordoados ao fim, tentando digerir tudo o que nos foi mostrado. Pode não ter o mesmo impacto que outros filmes do gênero, mas merece ser descoberto.

NOTA: 7,5

  • País de origem: EUA
    Ano: 2019
    Duração: 100 minutos
    Título original: The Lodge
    Distribuidor: –
    Diretor: Severin Fiala, Veronika Franz
    Roteiro: Severin Fiala, Veronika Franz
    Elenco: Riley Keough, Jaeden Martell, Lia McHugh, Richard Armitage, Alicia Silverstone