Crítica: As Ondas

Águas violentas destruindo castelos de areia

Segundo longa-metragem de Trey Edward Shults, “Waves” vai completamente na contramão de seu trabalho anterior. Enquanto que “Ao Cair da Noite” prezava pela sutileza, aqui ele cria algo muito maior e com mais pirotecnia. Ao narrar a dolorosa jornada de uma família norte americana, corrompida por eventos trágicos, o diretor constrói uma obra imersiva, intensa e cheia de excessos. A produção nos lança na velocidade de uma onde, turbulenta e cruel ao início até que se encontra a estabilidade. É desta forma que somos apresentados basicamente a dois filmes dentro de um. Uma história contínua mas que divide seu protagonismo. Quase como o lado A e lado B de um disco de vinil.

Já nos primeiros minutos de “Waves” compreendemos que não estamos diante de algo ordinário. Na batida das músicas e na velocidade de uma câmera inquietante, mergulhamos na rotina agitada de jovens que cuidam de seus corpos, se entregam às festas e em relacionamentos para serem expostos em uma rede social. Uma vida de liberdade e belas oportunidades, ainda mais para um jovem como Tyler (Kelvin Harrison Jr,), que é o grande orgulho de sua família. Este castelo se desmorona quando ele perde completamente o controle e acaba cometendo uma atrocidade que, por fim, reflete no rumo de todos aqueles que o amavam. É então que conhecemos a sobrevivência de sua irmã mais nova (Taylor Russell), que luta por seguir em frente ao mesmo tempo em que descobre um grande amor.

Apesar da longa duração, “Waves” tem um ritmo alucinante, o que torna seu minutos em uma experiência sem igual e prazerosa. Com uma potente trilha sonora de Atticus Ross e Trent Reznor, cores marcantes e inúmeros planos-sequência, a obra cria um universo imersivo e que nos faz sentir diversas sensações. Trey Edward Shults entrega um produto megalomaníaco e com algumas semelhanças aos recentes trabalhos de Sam Levinson (de “Assassination Nation” e “Euphoria”). Apesar dos belos discursos que traz como família, redenção e perdão, o diretor peca pelo excesso, soando forçado em algumas saídas para causar um fácil impacto e, pior, piegas quando tenta ser emotivo. Ele excede o tom necessário.

“Não nos permitem ser medianos”. Ainda que o diretor leva essa máxima a um nível elevado, ao menos ele consegue trazer um poderoso discurso a partir disso. Ao colocar o protagonismo da história à uma família preta, é interessante este debate sobre a pressão social existente entre todos eles, onde precisam batalhar dobrado para estar no lugar e na altura que todos os outros estão. É uma luta diária ser preto e ter que se provar digno das oportunidades que para o resto vem tão fácil. A obra ainda encontra espaço para falar sobre masculinidade tóxica e o quanto isso corrompe as relações. O elenco é poderoso e dá voz a todas essas boas ideias. Destaque para os jovens Kelvin Harrison Jr que domina o primeiro ato e a revelação Taylor Russell, que nasce na tela quase como uma figurante e ganha vida ao decorrer da trama, entregando uma surpreendente atuação ao fim.

“Waves” vem como uma onda em nosso peito. Chega duro como um soco e depois, quando se desfaz, nos acalenta. Um produto grande, intenso, que se nega à todo instante ser mediano. Emociona e nos faz imaginar como seria viver tudo aquilo, todo aquele turbilhão, sentir na pele aquela dor. Peca pelo excesso sim mas ao menos deixa um grande impacto em nós assim que termina e uma sensação prazerosa de poder ver algo extremamente revigorante, cheio de cor e alma.

NOTA: 8

  • País de origem: EUA
    Ano: 2019
    Título original: Waves
    Duração: 135 minutos
    Distribuidor: –
    Diretor: Trey Edward Shults
    Roteiro: Trey Edward Shults
    Elenco: Kelvin Harrison Jr., Taylor Russell, Sterling K.Brown, Lucas Hedges, Alexa Demie

Critica: Luce

Quando sua existência é um ato político.

Sucesso no Festival de Sundance, onde foi lançado ano passado, “Luce” é uma adaptação da peça teatral de JC Lee, que aqui também assina o roteiro. Através de um interessante thriller psicológico, a obra narra a conflituosa relação entre os quatro personagens centrais. É o tipo de filme que cresce lentamente, que inicia com uma problemática pequena e onde aquela situação simples acaba ganhando proporções cada vez mais assustadoras.

Luce é um jovem preto. Nasceu em uma região de combate na África e foi adotado por um casal norte-americano (Naomi Watts e Tim Roth). Aluno exemplar onde estuda, ele ministra debates, escreve discursos e está sempre distante de polêmicas. No entanto, a única que não o vê com bons olhos é a rigorosa professora Harriet Wilson (Octavia Spencer), que passa a questionar o caráter do bom moço depois de ler uma redação onde ele parece se identificar com uma ideologia violenta. A partir deste instante, os dois travam uma batalha silenciosa, tentando a todo custo manter as aparências e o lugar de respeito que ambos conquistaram.

Em certo momento, alguém questiona: “que homem preto tem o nome de Luce?” O nome, que vem de luz, lhe foi dado para se encaixar em seu novo espaço e apagar de vez seu passado. Viver na América, o lugar onde tudo é possível e sonhos se realizam. Nas aparências, ele vive dessa propaganda e age como modelo de tudo o que deu certo. O filme, então, cava essa superfície e nos convida a entender o que, de fato, há por traz do aluno exemplar. Sem procurar respostas, sabiamente, o roteiro não percorre os caminhos mais fáceis, nos fazendo questionar e a duvidar deste complexo personagem. Seria ele uma vítima de uma perseguição infundada? Seria ele um sociopata em ascensão? A provocação de “Luce” vem justamente disso, de nos fazer pensar tudo aquilo que evitamos. De dizer em voz alta o que fingimos não existir. Nos faz refletir nos tantos rótulos existentes em nossa sociedade e nessa pressão imposta por sermos tudo aquilo que esperam de nós. Não existem apenas santos e monstros, havendo inúmeras camadas entre essas duas divisões.

“Você não é preto. Você é o Luce”. Essa jornada do protagonista e a forma como todos o vêem me faz lembrar de como a América enxergava O.J.Simpson. O homem preto que gostava de musicais e jogava golfe nos fins de semana. Aquele que se encaixava perfeitamente ao moldes dos brancos e sentia orgulho por isso. Era um sinal de vitória, de conquista. Distante de seu mundinho, simultaneamente, ele era o símbolo da representação para a comunidade negra, mesmo que não estivesse com eles em nenhuma batalha, em nenhum momento de dor. Ninguém gostaria de ver Luce como vilão porque isso negaria as apostas. A sociedade precisa de heróis, dos ícones que exaltam o que deu certo.

Desta forma, “Luce” caminha como se uma bomba pudesse explodir a cada instante. A complexidade de cada personagem permite que a trama siga por caminhos imprevisíveis e torne este provocativo embate em uma experiência intensa, reveladora. O elenco de peso alavanca a potência, entregando excelentes atuações de Octavia Spencer, Naomi Watts e da belíssima revelação do jovem Kelvin Harrison Jr. Ele consegue causar empatia, ao mesmo tempo em que nos faz duvidar de suas boas ações. É aquele enigma que fascina, que seduz. A grande força da produção vem justamente de seu roteiro e desta capacidade de extrair de uma premissa tão simples, discursos tão poderosos, impactantes. O diretor Julius Onah concentra seus indivíduos em espaços fechados – assim como no teatro – seja entre as quatro paredes da casa, seja da escola. Os conflitos pulsam neste confinamento e onde todos são obrigados a se confrontar. Apesar dessas tantas qualidades, a obra acaba pecando em sua montagem. Não apenas pelo ritmo lento que pode cansar boa parte do público, como pela quebra de diversos momentos que poderiam causar um clímax mas são insistentemente interditados por uma outra sequência sem o mesmo valor. Impedindo, assim, o crescimento de uma tensão maior.

Por todas essas reflexões levantadas pela obra, é tão intrigante ver esses embates entre os personagens. Porque nenhum deles quer admitir o que sente, porque nenhum deles consegue dizer o que teme ou o que acredita. Porque isso fere a conduta, fere o rótulo que lhes foi dado. Não apenas do aluno perfeito, mas da mãe que não quer admitir as falhas que destruiriam anos de confiança. Da professora preta que precisa provar, mais do que todo mundo, que merece estar onde está. A existência deles se torna um ato político, quando, historicamente, estão ocupando um espaço que por anos lhes foi negado. Esses espaços foram alterados e eles são a representação dessa mudança.

NOTA: 8,5

  • País de origem: EUA
    Ano: 2019
    Duração: 109 minutos
    Distribuidor: –
    Diretor: Julius Onah
    Roteiro: Julius Onah, J.C. Lee
    Elenco: Kelvin Harrison Jr., Octavia Spencer, Naomi Watts, Tim Roth