Crítica: Mank

A bela jornada apática de Fincher

Aguardado retorno do mestre David Fincher, ele chega naquele ponto em que muitos diretores consagrados chegaram: fazer sua grande homenagem à Hollywood. É um projeto bastante pessoal, visto que aqui ele conta com o roteiro de seu próprio pai, Jack Fincher, que faleceu em 2003. “Mank”, justamente, dá protagonismo aos roteiristas, e esses indivíduos históricos que fizeram o cinema acontecer.

O filme faz um recorte na vida do roteirista Herman Mankiewicz e sua tumultuada jornada durante a produção de “Cidadão Kane” e sua busca por receber créditos pela obra. Apesar do belo conceito e por contar com uma produção deslumbrante – que facilmente o levará para as próximas premiações – é uma grande decepção. Na intenção de simular o cinema da época, David Fincher entrega seu trabalho mais engessado enquanto diretor. Desde o excesso de fade out, aos ruídos na imagem comum em rolo de filmes antigos, ao pedante letreiro na tela indicando ser um roteiro dentro de um roteiro. São escolhas visuais que se espera de um produto como esse, o que torna frustrante ver um diretor como Fincher se render a tanta obviedade. É o produto menos expressivo de toda sua carreira.

“Mank” é presunçoso e acontece sem nos convidar. Não apresenta nenhum conflito real ou algo que impulsione a trama. Nem mesmo as relações entre os personagens parece ter alguma relevância. Pouco se aprofunda em Mank, não nos permitindo sentir qualquer coisa a seu respeito. Gary Oldman é ótimo, mas seu protagonista não merece duas horas de nosso tempo.

Além de Oldman, Amanda Seyfried brilha na pele da atriz Marion Davis. Ela ilumina o filme mesmo com tão pouco tempo de cena.

NOTA: 6

  • País de origem: EUA
    Ano: 2020
    Disponível: Netflix
    Duração: 131 minutos
    Diretor: David Fincher
    Roteiro: Jack Fincher
    Elenco: Gary Oldman, Charles Dance, Amanda Seyfried, Lily Collins, Tom Pelphrey

Crítica: O Mistério de Silver Lake

Uma geração sem mais enigmas

Segundo longa-metragem de David Robert Mitchell após o elogiado “Corrente do Mal”. Ele volta a trabalhar em filme de gênero, mas amplia aqui suas possibilidades, sem receios de caminhar pela comédia e o suspense. Tem um toque de erotismo também e do estilo noir, onde um jovem caminha pela cidade para desvendar um cabuloso mistério. Há muita intenção condensada em único filme, buscando fortes referências à Hitchcock e esta força dos símbolos dentro de suas composições e, principalmente, às pirações de David Lynch. Enquanto que sua ação ocorre em Los Angeles, o cineasta aproveita para costurar uma grande homenagem ao cinema e as estes tantos nomes que deixaram um legado. No melhor estilo de “Cidades dos Sonhos”, que coloca Hollywood como parte central de sua trama, “O Mistério de Silver Lake” é o mais próximo de Lynch que o cinema recente alcançou.

É curioso como o filme vai sendo construído, onde seu protagonista traça uma jornada sem muito sentido e seguindo um rumo repleto de imprevisibilidades. Existe uma lógica que, até grande parte da trama, parece existir apenas em sua cabeça. Sam (Andrew Garfield) é um jovem perdido e punheteiro que entra em uma grande paranóia quando sua vizinha desaparece subitamente e um assassino de cachorros está a solta pelas ruas. Decidido a entender o que de errado está acontecendo, ele passa a procurar pistas nos mais improváveis lugares e achar uma razão para tanta insanidade. Seja em uma embalagem de sucrilhos ou nas HQs que coleciona, tudo passa a ser alvo de suas investigações. É uma busca um tanto quanto cômica e existe brilhantismo nesta aleatoriedade do roteiro. David Robert Mitchell cria uma cosmologia própria, que ganha proporções cada vez mais bizarras e fascinantes. Há uso de muitos simbolismos aqui, deixando rastros de significados que podem não ser claros à primeira visita.

Sam é o retrato de uma geração desmotivada, que segue sem grandes perspectivas. Vive sua vida banal sabendo que não haverá nenhuma recompensa por seus atos. Tem forte apego e é completamente dependente da cultura pop, que são uma das raras coisas com significado em sua rotina. “O Mistério em Silver Lake” diz muito sobre essa geração que não mais cria, vive apenas do reflexo do que já foi dito, escrito, inventado. Que aplica sentimentos e significados variados à qualquer item como forma de mantê-los motivados ou intrigados por alguma coisa nova. Nós não temos mais os vampiros e lobisomens, mas nem por isso deixamos de desenvolver nossas próprias paranoias. Criar este mistério para Sam é quase como uma necessidade, uma prova de que ainda está vivo. O longa ainda aproveita para debater justamente esta fragilidade da cultura atual, que ainda que depositemos sensações e representações à tantos ícones, muitas vezes essas criações são apenas fruto da ganância de alguém. No meio de toda essa loucura e da comicidade de tudo isso, a obra não deixa de plantar uma semente da dúvida em nós, que por alguns minutos passamos a vivenciar dessas conspirações e a questionar se de fato há mais significado por de trás de tudo aquilo que consumimos.

O grande acerto do filme é não se levar a sério. É entender o quão absurdo é e fazer piada de si mesmo. Há coragem em cada saída encontrada e uma originalidade que falta no cinema atual. Ser comparado com Lynch é o maior elogio que essa obra poderia receber e finalmente tivemos algo à altura dessa comparação. Claro, é preciso abstrair muito para se deixar levar por tantas pirações, mas é uma viagem gratificante, insana sim, mas altamente genial. David Robert Mitchell se mostra, mais uma vez, um diretor notável, nos fazendo mergulhar nas neuras de seu protagonista, muito bem defendido por Andrew Garfield. O que vale aqui não são as respostas ou as resoluções de sua trama, mas o caminho que percorre até chegar lá.

NOTA: 8,5

  • País de origem: EUA
    Ano: 2018
    Duração: 136 minutos
    Título original: Under The Silver Lake
    Distribuidor: –
    Diretor: David Robert Mitchell
    Roteiro: David Robert Mitchell
    Elenco: Andrew Garfield, Riley Keough, Grace Van Patten, Jimmi Simpson, Topher Grace, Zosia Mamet

Crítica: A Minha Vida Com John F. Donovan

Tudo aquilo que não se revela

Primeiro filme de Xavier Dolan (Mommy) em língua inglesa, “A Minha Vida com John F. Donovan” foi o grande fiasco na carreira do diretor canadense, que não conseguiu nem mesmo um lançamento nos Estados Unidos. Havia uma expectativa muito alta quanto a este seu trabalho que reunia um elenco poderoso de Hollywood, mas nem mesmo isso o salvou. Problemas na pós-produção, críticas pesadas no Festival de Toronto onde teve sua exibição e Jessica Chastain eliminada no corte final. A bomba era anunciada a cada nova notícia e mesmo assim resolvi arriscar pelo simples prazer de consumir mais um produto do cineasta (e curiosidade diante de tudo isso). Para minha grande surpresa, estranhamente, gostei do que vi. Senti algo muito forte e especial, mesmo diante de suas falhas, de seus constantes excessos.

Assim como todos os trabalhos do diretor, este retrata um momento muito íntimo de sua vida, logo que, quando criança, nutria uma admiração muito grande por Leonardo Dicaprio e chegou a mandar uma carta para ele aos 8 anos de idade. Este pequeno evento o inspirou a escrever e dirigir “A Minha Vida Com John F. Donovan”, que narra a história de Rupert (Jacob Tremblay), um pequeno garoto que troca correspondências com um grande astro de Hollywood – o John do título -, aqui interpretado por Kit Harington. Logo no começo, porém, é anunciado a morte do ator e são através dessas cartas escritas para seu fã que o filme investiga a ascensão e solidão deste misterioso homem.

John é o retrato desses jovens atores que lutam por crescer em Hollywood, que passam a ter suas vidas controladas pela mídia e a sofrer as consequências da fama. Há algo de misterioso nesses ícones, um fascínio por descobrir o que não se revela, por ver o que há além dos holofotes. O filme, então, invade essa privacidade a fim de entender este objeto de desejo. A intimidade, os segredos, o que o torna tão frágil. É interessante, ainda assim, como no fim das contas, John não deixa de ser um enigma, um fantasma. Conhecemos sua versão pelo ponto de vista de outra pessoa. Conhecemos suas partes. O filho que não se conecta com a mãe, a história de amor forjada, a homossexualidade aprisionada. Mas não conhecemos sua verdade, sua mais completa essência. Em um dos instantes mais belos, a mãe o assiste cantar ao lado do irmão deitado em uma banheira e seus olhares se encontram. A câmera fixa naquele olhar puro e tão distante, tão vazio. O filme desperta em nós este fascínio de tentar desvendá-lo e nos faz refletir sobre tantos casos obscuros de atores jovens que se foram e nunca foram compreendidos.

Há algo na presença de Kit Harington que me encanta. É irônico sua escalação, visto que assim como John, ele nunca foi visto de forma séria por Hollywood, apenas um rosto bonito sem talento. Ele consegue transmitir essas inseguranças do personagem e este receio que tem por viver tantas mentiras. É bom revisitar esses temas tão recorrentes de Xavier Dolan e a sensibilidade com que ele retrata a homossexualidade em seus filmes. É interessante notar como, mesmo em um produto mais comercial, ele deixa muito visível seu toque pessoal, seja pela construção dos personagens, na forma com que captura diálogos verborrágicos ou até mesmo na cafonice visual que expõe tudo isso. A personagem de Susan Sarandon é um exemplo claro disso. É exagerada, dramática e uma criação claramente vinda dele. Mesmo em outro país, com novos cenários, o diretor não perde sua assinatura, seu olhar e sua maneira peculiar de construir seus universos.

Ainda que seja uma produção muito cuidadosa e charmosa sim, “A Minha Vida Com John F. Donovan” não deixa, assim como outros filmes do diretor, de exceder o tom. Dolan tem uma mão pesada e extrapola na breguice em alguns momentos, diminuindo o valor de seu produto que poderia ter mais impacto pela sutileza. A cena do abraço entre Rupert e sua mãe ao som de “Stand By Me” é um assombroso equívoco. É forçado e se distancia do resto que ele construiu ali. No entanto, há algo de cafona em Dolan que tem seu brilho, que funciona, porque ele prova não ter receio disso. A maneira como ele insere as canções, não é apenas um acalento para alma dos que nasceram, assim como ele, na década de 90, mas uma prova dessa coragem. Brega sim, mas divertida. Digo isso porque não há nada mais apelativo que finalizar seu produto com “Bitter Sweet Symphony“. É um golpe sujo que funciona, porque vem dele e, querendo ou não, me fez terminar de vê-lo com um sorriso no rosto e olhos lacrimejados.

Uma das maiores armas de Dolan aqui é seu poderoso elenco. Mesmo sem Chastain, é muito bom ver todos em cena. Kathy Bates e Sarandon, mesmo que menores, estão fantásticas. Natalie Portman não tem muito o que fazer com sua fraca personagem, enquanto que Jacob Tremblay surge irritante com seu protagonista verborrágico. Um dos melhores instantes, porém, além da presença de Harington, é ver Thandie Newton e Ben Schnetzer dividindo a cena. Há algo de muito natural e especial entre os dois estranhos que narram toda a história. Ben, que vive o Rupert mais velho, nos revela esse personagem que se moldou pelas palavras de seu grande admirador. É belo e poético, então, ao final nos darmos conta de que ele criança não teve acesso a última carta deixada por John que, curiosamente, a única vez que o roteiro expõe suas próprias palavras é pela voz de outra pessoa. Seu último suspiro traz esperança mas uma melancolia que talvez impedisse Rupert de seguir seus sonhos, seus passos. Seus próprios passos, enfim. Sentado na garupa de uma moto, ao som de The Verve, sem medo de ser quem é, livre dos julgamentos, livre da prisão que a mesma mídia construiu sobre John F. Donovan.

NOTA: 8,5

  • País de origem: EUA, Canadá
    Ano: 2018
    Título original: The Death and Life of John F. Donovan
    Duração: 127 minutos
    Distribuidor: –
    Diretor: Xavier Dolan
    Roteiro: Xavier Dolan
    Elenco: Kit Harington, Jacob Tremblay, Ben Schnetzer, Natalie Portman, Thandie Newton, Chris Zylka, Susan Sarandon, Kathy Bates, Michael Gambon, Sarah Gadon

Crítica: A Assistente

Os bastidores do silêncio

Nos últimos anos uma bomba caiu sobre Hollywood. Movimentos como o “Me Too” – que ganhou força em 2017 – cortaram o silêncio de milhares de mulheres que foram abusadas sexualmente, assediadas e chantageadas pelos chefões do mundo do entretenimento. “A Assistente” surge como o primeiro grande filme a tratar do assunto e por isso possui uma grande relevância no cenário atual. É um registro necessário, que foge do sensacionalismo ou oportunismo e narra de maneira sutil, honesta e bastante realista um momento tão emblemático como este.

Primeiro filme de ficção escrito e dirigido por Kitty Green, que construiu sua curta carreira em documentários. Acredito que esta sua habilidade em contar histórias reais tornou este seu novo trabalho possível, capaz de gerar boas discussões e causar impacto. É curioso como, para fazer sua denúncia, ela optou por revelar o olhar de quem estava nos bastidores e não necessariamente na linha de frente. Somos inseridos neste universo através de Jane (Julia Garner), uma aspirante produtora de cinema que consegue o emprego dos sonhos para ser assistente de um poderoso magnata do entretenimento. Apesar de poucos meses dentro da agência, ela começa a perceber que algo de muito estranho ocorre ali dentro e passa a criar consciência dos tantos abusos que existem naquele ambiente tóxico de trabalho. É desta forma que a diretora consegue criar uma atmosfera tensa e um nível de realismo absurdo aqui. As conversas, as reuniões, os sons, somos completamente inseridos neste mundo que, aos poucos, se torna altamente claustrofóbico, angustiante.

É bastante interessante como a trama vai sendo revelada. Aos poucos, vamos vivenciando ao lado daquela assistente situações que parecem comum naquele lugar, apesar de assustadoras. Desta forma, o filme vai se tornando um poderoso thriller guiado por Jane, uma das poucas mulheres que trabalham em um ambiente dominado por homens brancos. Ela é a personificação da inocência quebrada, da jovem que descobre a sujeira que habita o lugar dos seus sonhos. Há um momento em que Jane é obrigada a pedir desculpas, sendo ensinada e forçada por homens superiores a dizer como ela se sente. Ela, por fim, também representa esse silêncio de tantas mulheres, que são censuradas e repreendidas. O roteiro, muito bem pontuado, acompanha um dia inteiro ao lado de sua rotina, e assistirmos seu momento de catarse, de revelação. A presença de Julia Garner só aumenta a grandeza e poder desses discursos. Ela expõe doçura e inocência, ao mesmo tempo em que há desespero e desconforto em seu olhar, em seus trejeitos. Belíssima composição.

Um dos instante mais desesperadores aqui é quando Jane cria a coragem para denunciar o que vê. A conversa que ela tem com um homem, aparentemente do RH, sintetiza o horror que é estar ali, vendo tudo de perto. Ela não é levada a sério, é ameaçada. Aquele que parecia ser seu único lugar seguro se desmorona. É sufocante ter que ouvir o que ela ouve. Jane está nos bastidores, tudo o que ela sabe é porque ouviu, percebeu, limpou os restos do crime. Ainda que ela não esteja envolvida, estar ali, saber e se manter calada, a torna uma cúmplice. Com isso, “A Assistente” nos faz refletir sobre esse silêncio, sobre todas as pessoas que de alguma forma estiveram envolvidas com tudo isso, seja por aquelas que não viam maldade, seja por aquelas que foram chantageadas para não contar. Curioso como o filme nunca revela o nome ou o rosto de seu principal vilão. Ele é a sombra que caminha pelo escritório. A voz tenebrosa do telefone. As palavras ríspidas de um e-mail. Ele é o homem que existe mas todos fingem não ver. E não há nada mais assustador que isso, porque ele parece inalcançável, inatingível.

Mais do que revelar os bastidores podres do entretenimento, “A Assistente” também surge como o registro de uma mudança. O primeiro passo dado para a revolução. É aquele degrau pequeno, passo lento, mas que está ali e foi necessário. Necessário para tudo o que se deu depois. Jane é, também, a representação esperançosa deste pequeno ato de rebeldia. O longa termina quase como se aquele fosse o fim de um dia comum e que o próximo seria o mesmo. Há um certo alívio saber que não. Filmes como este provam que não vivemos naquele mesmo tempo. Não que tudo tenha acabado mas é ótimo saber que historias como esta hoje podem ser contadas e podemos falar abertamente o que antes era só um boato cruel, um segredo amplamente acobertado por homens de poder.

NOTA: 8,5

  • País de origem: EUA
    Ano: 2019
    Título original: The Assistante
    Duração: 87 minutos
    Distribuidor: Diamond Films
    Diretor: Kitty Green
    Roteiro: Kitty Green
    Elenco: Julia Garner, Kristine Froseth, Matthew MacFadyen, Noah Robbins