A boneca livre da caixa

Foi tão louco a proporção que “Barbie” foi ganhando ao longo dos últimos meses. Todo o hype e empolgação do público diante do filme foi algo estrondoso. Fazia tempo que não víamos esse envolvimento tão forte com um material original que mal tinha revelado sobre o que era. Mais do que um case de marketing de sucesso (e talvez um desproporcional efeito manada?), existia uma magia acerca da produção quase inexplicável. Parecia um sonho, tão colorido e irreal. Posso afirmar que todo esse meu fascínio tem muita relação com a nítida adoração, carinho e orgulho que todos os envolvidos demonstraram ter com o projeto. E tudo isso transparece. Há muito coração na produção e isso a torna imensamente especial.

A diretora Greta Gerwig e Margot Robbie – que também produz – tinham um desafio e tanto em mãos. Nada do que elas fizessem apagaria o fato de que Barbie é uma peça publicitária. Elas têm total consciência disso – e até brincam sobre o controle da Mattel – mas vão além. Elas usam dessa imagem perfeita da boneca para refletir sobre inúmeras questões do universo feminino. É uma sátira provocativa, que explora o lúdico mundo dos brinquedos para falar sobre o desastroso mundo real.

Em Barbieland, nada possui defeitos. As bonecas vivem felizes sabendo do bem que elas fizeram para a vida de tantas garotas lá fora. Quando a Barbie estereotipada, vivida por Margot, começa a apresentar imperfeições, ela precisa ir para o mundo dos humanos para se reconectar com a sua dona. Lá fora, ela entra em uma grande crise existencial quando percebe quais são os espaços que as mulheres ocupam. Nesta viagem, Ken (Ryan Gosling) também está presente, mas o que ele vê, diferente dela, o enche de orgulho e o faz crer que o lugar ideal é aquele dominado pelos homens.

Se lá no início, Greta faz uma bem-vinda referência à “2OO1: Uma Odisséia no Espaço”, essa virada que apresenta na história está mais para o “O Planeta dos Macacos” e a transformação da sociedade seguindo uma nova ordem soberana. O delicioso humor de Gerwig e Noah Baumbach, que co-roteiriza, está sempre presente, o que torna essa jornada assustadora em algo surpreendentemente divertido de assistir. São piadas que funcionam, mas além de arrancar boas risadas também fazem uma crítica pungente e necessária sobre a realidade em que vivemos. É o tal do seria cômico se não fosse tão trágico. Eles brincam com esses absurdos para nos alertar sobre machismo e as consequências lamentáveis do patriarcado, além de nos fazer refletir sobre as tantas opressões que as mulheres precisam encarar aqui no lado de fora, bem longe longe do mundo ideal dos brinquedos.

O monólogo da personagem de America Ferrera, atriz que foi figura importante no movimento Me Too em Hollywood, vem como um soco até nós. Porque é honesto, porque vem cheio de rancor, mas também traz muita esperança. É a carta de Greta Gerwig a todas as garotas que brincaram de boneca um dia. E para aquelas que não brincaram também. Para as mulheres que cresceram acreditando que, diferente da Barbie, não podiam ser o que elas quisessem ser. Caber dentro de uma caixa era o suficiente. É muito forte todos esses discursos do filme que acerta ao usar uma linguagem acessível e sem ser superficial. É um texto inteligente, audacioso, que tem ainda a coragem de expor, no meio de sua metalinguagem, o quanto o mercado usa de uma falsa sensação de inclusão e igualdade para lucrar. É irônico vindo de um filme que tem como propósito a venda, mas eles sabem disso (e nós sabemos disso também) e mesmo assim eles atravessam essa linha sem nenhum pudor e nada disso diminui a força de suas mensagens. Pelo contrário. Quando vemos o quanto suas falas têm incomodado é quando vemos o quanto elas eram necessárias e o quanto elas foram certeiras.

Toda a nostalgia e beleza do visual, aliada a prazerosa aleatoriedade do roteiro, nos faz querer entrar dentro da obra e desfrutar de todas as suas cores e possibilidades. Passear pelos maravilhosos números musicais e poder tocar nos cenários que são tão mágicos. “Barbie” é um respiro diante do cinema atual em que o realismo e a escuridão parecem o único caminho. Melhora ainda mais quando temos um elenco tão à vontade e que, nitidamente, está se divertindo horrores com tudo aquilo. Margot Robbie brilha como protagonista e eu não poderei esquecer tão cedo o que Ryan Gosling fez como Ken. É tão absurdamente bom e eu simplesmente não estava preparado para isso. “Barbie” não é um filme perfeito e tudo bem se você não gostou. O hype, infelizmente, acaba despertando frustrações e isso é inevitável. Mas confesso que saí extremamente feliz da sala do cinema e querendo abraçar todo mundo que fez desse arriscado projeto algo possível.

NOTA: 9,0

País de origem: Estados Unidos
Ano: 2023
Titulo original: Barbie
Duração: 114 minutos
Diretor: Greta Gerwig
Roteiro: Greta Gerwig, Noah Baumbach
Elenco: Margot Robbie, Ryan Gosling, America Ferrera, Ariana Greenblatt, Simu Liu, Kate McKinnon, Will Ferrell

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