Filtro da realidade
Jamais poderia imaginar que um filme sobre uma aeromoça pudesse me causar tanta identificação. Ao narrar a rotina de trabalho de Cassandre, interpretada pela talentosa Adèle Exarchopoulos, “Bem-vindos a Bordo” consegue realizar um brilhante estudo de personagem enquanto entrega um retrato imensamente atual sobre os novos comportamentos da sociedade, sobre a vida dos Millennials e as consequências de se fazer parte de um grupo que viveu todos os tipos de transformações.
Dirigido pela dupla Emmanuel Marre e Julie Lecoustre, o longa acerta ao revelar o dia a dia no trabalho da protagonista. Com tom documental, todas as situações narradas transmitem um alto nível de verossimilhança. Entre reuniões e treinamentos, é muito possível acreditar nesse universo que nos entrega. Existem dois momentos, inclusive, que geram bastante desconforto. Quando é pedido a ela, durante um exercício, para sorrir e esquecer os problemas de fora e uma entrevista de emprego, no qual Cassandre claramente inventa um personagem para conseguir encarar o mundo corporativo. E isso diz muito sobre nós e como hoje não mais encaramos aquilo que paga nosso salário como parte importante de nossa identidade pessoal.

Além da carteira assinada, a protagonista busca nas bebidas, festas e aplicativos de relacionamento uma forma de preencher seus instantes de ócio ou qualquer buraco em sua rotina que a faça pensar na própria vida, em suas desilusões e toda a turbulência emocional que enfrentou no passado. Cassandre é um retrato preciso de uma geração que encara a própria existência como algo sem muito sentido e não vê nada muito além que a incerteza para o futuro. Lá nos ares, ela mantém uma distância segura de tudo que a faz lembrar a realidade, sem pôr os pés naquilo que sabe que não pode lidar. Distante de relações verdadeiras, distante de qualquer sentimento.
O que, infelizmente, acaba diminuindo a relevância sobre seus discursos é a necessidade de criar uma camada mais profunda à personagem, inserindo uma perda trágica no passado. Como se isso justificasse suas ações no presente, seu comportamento e não mais pelo simples fato dela viver no mundo em que vivemos hoje (assim como todos nós). Quando no último ato, a obra cai para o drama familiar, nos mostrando sua relação com o pai e a irmã, perde um pouco o brilho e nosso interesse por sua jornada, que até esse momento era imensamente identificável.
Adèle Exarchopoulos está fantástica aqui, com toda sua espontaneidade, despojamento e habilidade de demonstrar emoções com seu olhar. A sequência em que ela precisa mudar o plano na operadora do celular é surpreendentemente comovente e ela nos carrega junto a sua dor. “Bem-Vindos à Bordo” é o tipo de obra que diz muito com seus silêncios, que nos assusta com a precisão com que revela nossos hábitos atuais e todo o vazio que buscamos para preencher nosso ócio.
NOTA: 8,0

País de origem: Bélgica, França
Ano: 2021
Titulo original: Rien à foutre
Duração: 110 minutos
Diretor: Emmanuel Marre, Julie Lecoustre
Roteiro: Gene Stupnitsky, John Phillips
Elenco: Adèle Exarchopoulos, Mara Taquin