Crítica | Aftersun

Memória ferida

Demorei para conseguir escrever algo sobre esse filme, tamanho o baque que levei. Nenhum outro que vi em 2022 me despertou o que esse aqui conseguiu. Debute de Charlotte Wells na direção de um longa-metragem, ela realiza um cinema que transcende, que nos leva para um lugar imensamente íntimo, doce e, ao mesmo tempo, tão obscuro e doloroso. “Aftersun” terminou e me deixou paralisado, em completo estado de catarse. 

A verdade é que nada nos prepara para onde este filme chega. Talvez ele seja até maior do que a diretora pretendia ao início. Enquanto grande parte da projeção, estamos lidando com as férias de verão e o relacionamento entre uma filha, Sophie (Frankie Corio) e seu pai Calum (Paul Mescal), ao decorrer entendemos que se trata de uma história de reconciliação, de memória e luto. A trama toda acontece com uma leveza natural, entre conversas e situações corriqueiras. A grande potência aqui é que grande parte desses momentos são registrados com uma câmera durante a viagem. E esses instantes, congelados pelo tempo, ganham novos significados no futuro. 

“Aftersun”, então, é guiado pelo olhar de Sophie, já adulta, revisitando as lembranças com seu pai, durante suas férias na Turquia. É brilhante como a primeira aparição dela é pelo reflexo de uma TV e muito do que a diretora nos revela é uma imagem distorcida da realidade. Muito provável que ela, na fase atual, tenha a mesma idade de seu pai, durante os vídeos que assiste. Existe aqui uma metalinguagem fascinante, pois é como se Charlotte Wells estivesse ali, revivendo sua própria vida e usando da arte para expurgar o que antes estava preso. E é aqui que a obra vai além. Essa revisita que Sophie faz é muito mais do que para reencontrar aquela lembrança intocável, mas para abraçar aquela dor do passado, que só a idade a faz entender. 

Eu poderia simplesmente viver dentro desse filme, de tão adorável que ele é. As cenas entre os protagonistas são de uma ternura que inunda a alma. Gostoso demais ver Paul Mescal dividindo a cena com a jovem e talentosíssima Frankie Corio. Toda essa atmosfera dos anos 90 também é lindamente arquitetada pela produção, que nos faz voltar ao tempo e nos colocar ali dentro, compartilhando daquelas sensações e sentimentos. A trilha musical, que vai de David Bowie, R.E.M. e Blur, ajudam ainda mais nessa fantástica imersão. 

Dito isso, eu nunca mais irei ouvir a clássica “Under Pressure” da mesma forma. O que Wells constrói naquele momento não tem palavras para descrever. O final de “Aftersun” é um abraço entre presente e passado. Entre a memória ferida e a memória, enfim, compreendida. Esse instante é dolorosamente impactante e ecoa em nós. E é quando a diretora nos propõe o exercício de revirar o que acabamos de assistir e buscar os indícios que nos passaram despercebidos. O resultado dessa experiência é algo difícil de esquecer. Uma obra que me comoveu profundamente e me fez perguntar quando foi a última vez que vi um filme tão bom quanto este, porque ele faz tudo o que foi lançado recentemente parecer tão menor e insignificante. 

NOTA: 10

País de origem: Estados Unidos, Reino Unido e Irlanda do Norte
Ano: 2022
Duração: 96 minutos
Disponível: Mubi
Diretor: Charlotte Wells
Roteiro: Charlotte Wells
Elenco: Frankie Corio, Paul Mescal

Crítica | Pleasure

Lucro e prazer

Enquanto assistia a “Pleasure”, me vi pensando em como é raro o cinema trazer como tema a indústria pornográfica de forma tão realista e sem ser alvo de julgamento ou piada. Inspirado no curta-metragem de mesmo nome da cineasta Ninja Thyberg, ela volta a explorar os bastidores, do qual pesquisou por anos, para construir sua trama. Confesso que a produção me surpreendeu bastante, não só pela ousadia das cenas, mas por seu roteiro que flui tão bem durante seus minutos. Me encontrei imerso em seu universo e na honestidade crua com que tudo é revelado.

A jovem Bella Cherry (Sofia Kappel) sai da Suécia e aterrissa em Los Angeles, onde pretende se tornar a maior estrela da indústria pornô. Em “Pleasure”, vamos acompanhando os passos que ela precisa enfrentar para se tornar alguém nesse meio competitivo. Durante toda a sua trajetória, eu sentia algo como “isso realmente deve acontecer desse jeito”. O filme não romantiza suas ambições e nem julga suas atitudes questionáveis. O que a motiva a estar ali, inclusive, nunca é desvendado. E sinto que isso a deixa ainda mais crível, porque não acho que exista uma justificativa, de fato. Dinheiro e fama definitivamente estão em jogo, mas acima disso, é ela sendo livre para fazer suas próprias escolhas.

Ainda assim, a obra não esconde o grande fato de que a personagem é vítima de uma indústria dominada por homens, que naturaliza a submissão e a violência contra a mulher. Que lucra enquanto confunde assédio com prazer. Por muitas vezes, Bella é bem recebida pelos profissionais, o que torna tudo ainda mais assustador. Porque ela se sente em casa justamente onde é diminuída, onde é silenciada. Nesse sentido, o longa vai seguindo por um viés próximo de um terror, porque a vemos sendo devorada nos locais que sugerem proteção. Em uma das cenas mais poderosas e angustiantes do filme, a jovem se manifesta ao entender o quão vulnerável é estar nesse ambiente, mas logo é forçada a entender que é simplesmente assim como as coisas funcionam. Que para ficar, precisa aceitar.

“Pleasure” é uma obra bastante controversa e pode chocar grande parte do público. Há muita coragem nesta exposição que faz e muito cuidado também. A atriz sueca Sofia Kappel está ótima no papel e torna a experiência ainda mais interessante. É muito sensível e doce os respiros que a trama encontra para revelar as relações pessoais de Línnea, o nome verdadeiro da personagem. É gostoso ver aquelas conversas corriqueiras com suas novas amigas, ao mesmo tempo em que entendemos que se tratam de duas pessoas completamente diferentes que habitam aquele corpo. Para se manter no estrelato, porém, Bella precisa reinar acima de Línnea. E quanto mais ela ganha fama e respeito na indústria – o que ela tanto almeja – mais ela precisa perder de si mesma.

NOTA: 8,5

País de origem: França, Holanda, Suécia
Ano: 2021
Titulo original: The Unbearable Weight of Massive Talent
Duração: 109 minutos
Disponível: Mubi
Diretor: Ninja Thyberg
Roteiro: Ninja Thyberg, Peter Modestij
Elenco: Sofia Kappel, Revika Anne Reustle

Crítica | Crimes do Futuro

O ensaio inacabado de Cronenberg

David Cronenberg sempre foi um sujeito curioso e seus filmes sempre me despertaram a atenção. Ele retorna à ficção científica, gênero que o consagrou lá nos anos 80 com filmes como “Scanners” e “A Mosca”. Apesar de trazer em sua narrativa um viés mais minimalista, ele volta a desenhar um universo intrigante. Em “Crimes do Futuro”, a espécie humana vai além de seu estado natural e o corpo passa a abrigar novos órgãos.

É o palco perfeito para o cineasta trabalhar o horror corporal, que sempre lidou com maestria, logo que em sua trama, um artista performático, vivido por Viggo Mortensen, decide expor em seus espetáculos a retirada de seus “órgãos-extras”. Aqui, o corpo e suas mutações são a matéria prima para causar espanto. De fato, é tudo bastante grotesco e causa desconforto, não apenas por essa estranha evolução humana, mas por toda a atmosfera que ele cria aqui. O futuro é descrente, vazio e todas as ambientações parecem como um museu. Assim como em “Crash”, aqui as pessoas buscam por novos estímulos e quando o corpo evolui para uma condição que não sente mais dor, o autoflagelo se torna um fetiche e a cirurgia, o novo sexo.

Ainda que seja extremamente fascinante essas criações de Cronenberg, que teve essa ideia há mais de uma década, “Crimes do Futuro” soa como um belíssimo esboço de um filme que ainda não chegou a acontecer. Todos os personagens secundários caminham por ali perdidos, como promessas de algo que nunca se concretiza. É frustrante ver esse universo, que é tão rico, resultando em absolutamente nada. Como se ele pincelasse ali suas intenções, mas não tivesse tido tempo de finalizar nenhuma delas. Infelizmente, toda a trama é bastante tediosa e além dessas transformações do corpo, visualmente impactantes pelo belo trabalho de maquiagem e efeitos visuais, não sobra muita coisa.

Nem mesmo as atuações me parecem inspiradas. Inclusive, fiquei extremamente desconfortável com a atuação da Kristen Stewart, mesmo que a câmera focada em suas expressões tivesse a certeza de que ela estava entregando algo bom ali.

“Crimes do Futuro” não chega a causar indiferença, tem lá seus bons momentos de impacto, mas eu só consegui desejar que ele acabasse. Tem um universo fascinante e que intriga, mas suas boas ideias são desperdiçadas com uma trama extremamente desinteressante de se ver, dentro de um filme inacabado.

NOTA: 6,0

País de origem: Canadá, Grécia, Reino Unido, Irlanda do Norte
Ano: 2022
Titulo original: Crimes of the Future
Duração: 107 minutos
Disponível: Mubi
Diretor: David Cronenberg
Roteiro: David Cronenberg
Elenco: Viggo Mortensen, Léa Seydoux, Kristen Stewart, Scott Speedman, Don McKellar

Crítica | Great Freedom

A liberdade relativa

Vencedor do prêmio “Um Certo Olhar” no Festival de Cannes de 2021, “Great Freedom” conta uma história dolorosa. Não é baseada em nenhum caso específico, mas ilustra com extrema delicadeza o período em que amar era considerado um crime. Parece uma trama distópica e nos sufoca quando entendemos a vida opressora que muitos tiveram que enfrentar. Quando sentimos o peso que muitos tiveram que suportar.

Escrito e dirigido por Sebastian Maise, o filme nos revela a jornada de Hans Hoffman (Franz Rogowski) que, em um período pós-guerra na Alemanha, é encarcerado repetidas vezes ao longo dos anos por ser homossexual. A obra, então, acerta na montagem ao intercalar as três vezes em que ele esteve atrás das grades, alternando entre os anos e nos fazendo compreender os sacrifícios e atitudes do protagonista e tudo o que ele vai perdendo de si nesse tempo. Hans ainda tenta se manter firme, buscando, mesmo diante das dificuldades, alcançar algum tipo de afeto ali dentro. Burlando regras para, ao menos, sentir o toque do outro.

Franz Rogowski está impecável como protagonista. Me vi o tempo todo sofrendo ao seu lado, querendo poder abraçá-lo. Hans é o doloroso retrato de tantas pessoas que tiveram suas identidades apagadas. Nunca podendo viver, nunca podendo amar. “Great Freedom” choca ao recontar esse momento da história em que homens foram perseguidos e castigados pela forma como eles amavam. O fim, então, vem como um soco ao falar de liberdade e o quanto ela é relativa. O que é ser livre para você pode também ser a minha prisão.

NOTA: 9,5

País de origem: Alemanha, Áustria
Ano: 2021
Duração: 117 minutos
Disponível: Mubi
Diretor: Sebastian Meise
Roteiro: Thomas Reider, Sebastian Meise
Elenco: Franz Rogowski, Georg Friedrich, Anton von Lucke

Crítica | Sweat

A existência além de um perfil no Instagram

Ao mergulhar na rotina de uma influencer fitness, o drama polonês “Sweat” consegue fazer um estudo extremamente atual sobre os reflexos dessa cultura digital em nossa vida. O roteiro tenta desvendar o que há por trás daquilo que não vimos, dessa existência além de um perfil do Instagram. Acaba sendo perturbador acompanhar a jornada da protagonista porque diz muito sobre essa estranha obrigação que construímos para nós mesmos. A de registrar como forma de existir.

Acompanhamos, então, três dias na vida de Sylwia (Magdalena Koleśnik), a influencer de milhões de seguidores que, para manter seu projeto fitness, acaba sendo o rosto de diversas marcas e vivendo, aparentemente, uma vida dos sonhos. Um desconforto em sua carreira nasce, porém, quando decide postar um vídeo se abrindo publicamente sobre sua solidão e sobre querer encontrar um homem. É muito curioso esse conflito porque ele mostra o quanto a vida digital precisa ser uma encenação de ânimo e sucesso e Sylwia se vê estremecida quando abre essa porta, quando permite ser honesta com aqueles que a seguem. É como se ela quebrasse uma regra, revelasse ao mundo algo que a torne frágil e isso é inadmissível.

“Sweat” faz um registro muito real sobre o que é estar presente nas redes sociais. Em nenhum momento o roteiro julga sua protagonista, que é escrita com muita originalidade, e nem busca por conclusões fáceis sobre o assunto, tanto que se encerra com um sentimento amargo. Magnus Von Horn, que aqui escreve e dirige, coloca sua personagem em um ponto de reflexão. Até que ponto ela é capaz de aguentar essa pressão e as demandas exaustivas de se viver virtualmente. Visualmente, o filme traz cores fortes e alegres, ilustrando essa contradição entre a rotina projetada para os outros verem e aquela em que realmente se vive. Aquela em que se é vulnerável, solitário. Aquela que se esconde.

Em tom documental, o longa nos causa bastante desconforto e alcança momentos de brilhantismo como quando Sylwia visita sua família. Infelizmente, sinto que a trama acaba focando demais no plot do stalker, quando poderia usar desse tempo para explorar outras questões mais interessantes. Sinto, também, que o discurso final foi um pouco desnecessário, onde poderia ter sido mais sutil nas revelações da protagonista.

“Sweat” termina e nos deixa em silêncio, pensativos sobre essas armadilhas que as redes sociais nos pregam. Não acredito que o filme se aprofunde tanto no tema, por vezes, é até bastante vago, mas causa algo em nós. Diz muito sobre solidão, sobre a vida além daquela que postamos e tudo aquilo que é tão frágil em nós e omitimos. No virtual, os outros não querem ouvir e nós não queremos que eles saibam.

NOTA: 8,0

País de origem: Polônia, Suécia
Ano: 2020
Duração: 100 minutos

Disponível: Mubi
Diretor: Magnus von Horn
Roteiro: Magnus von Horn
Elenco: Magdalena Koleśnik

Crítica: Shiva Baby

A nova definição da vergonha

Fantástico trabalho de estreia da canadense Emma Seligman. “Shiva Baby” revela algumas experiências pessoais da cineasta enquanto jovem, bissexual e vivendo em uma comunidade judaica de Nova York. É um retrato bastante íntimo e um tanto quanto transgressor ao discutir temas tabus dentro de uma cultura tão conservadora.

Na primeira cena, Danielle (Rachel Sennott) se arruma para um evento enquanto é paga depois de transar com um homem mais velho. Ela vai participar de um Shivá, cerimônia judaica de sete dias de luto, onde encontra com sua família, a ex-namorada e este seu atual Sugar Daddy, que não apenas conhece seus pais como também é casado e com um filho. É através desta embaraçosa reunião, que o longa nos provoca um riso nervoso, nos fazendo acompanhar uma série de saia-justas, onde a protagonista precisa manter uma aparência que definitivamente não é a sua.

Sabe quando nos deparamos com uma situação tão vergonhosa, onde só queremos cavar um buraco na terra e desaparecer? “Shiva Baby” nos traz a experiência de desfrutar deste incômodo sentimento por uma hora e meia. É uma comédia que desperta desespero e, somado ao violino que toca ao fundo, mais o faz parecer um filme de terror, do qual tememos a todo instante os próximos acontecimentos.

Toda a ação acontece em um único ambiente e a diretora domina aquele pequeno espaço com maestria. O roteiro, também assinado por Seligman, é esperto, tem dinamismo e conta com diálogos ácidos que provocam neste inesperado embate entre práticas sexuais e ritual religioso. O filme tem ritmo, diverte e nos faz adentrar aquele peculiar universo. É claustrofóbico estar na pele da protagonista que precisa lidar com todos interferindo em suas escolhas e palpitando sobre seu futuro. Danielle, interpretada pela ótima Rachel Sennott, enfrenta este período de difíceis decisões da fase adulta e se vê rodeada por uma sociedade que espera algo dela, que a pressiona por viver as conquistas que todos viveram em sua idade. É um peso grande que ela carrega nas costas, que todos nós carregamos.

NOTA: 8,5

País de origem: EUA
Ano: 2020
Disponível: Mubi
Duração: 71 minutos
Diretor: Emma Seligman
Roteiro: Emma Seligman
Elenco: Rachel Sennott, Molly Gordon, Polly Draper, Fred Melamed, Danny Deferrari

Crítica: Matthias e Maxime

Depois do beijo

Xavier Dolan é um cineasta de excessos. Suas produções são repletas de exageros e maneirismos, o que fez com que até mesmo os críticos que tanto apostaram em sua carreira acabaram se cansando de suas invenções. Ele lança “Matthias e Maxime” logo após seu produto mais esculachado, “A Minha Vida Com John F.Donovan”, ter sido esquecido no churrasco mesmo com um grande elenco hollywoodiano em mãos. É um retorno bem-vindo à suas origens, à simplicidade, quase como um respiro necessário, finalmente livre de pretensões.

O filme se inicia com uma premissa tola, digna de uma fanfic gay adolescente. Dois amigos héteros de infância, Matthias (Gabriel D’Almeida Freitas) e Maxime (Dolan), se reúnem com outros amigos para um divertido fim de semana regado a muitas bebidas e drogas. O que era para ser um instante de descontração, acaba transformando a relação entre os dois. Isso porque no meio do grupo surge uma estudante de cinema que precisa finalizar seu curta-metragem experimental e precisa de dois homens em cena se beijando. Depois de uma aposta perdida, são os dois amigos que precisam enfrentar isso. No entanto, o beijo faz com que se questionem sobre o que realmente sentem um pelo o outro, despertando ali um desejo jamais explorado.

Apesar do início questionável, o que vem a seguir é que dá o tom da obra e as intenções de Dolan são finalmente reveladas. O beijo acaba instaurando na mente dos protagonista uma dúvida inquietante, confrontando suas existências. Confrontando o que eles achavam saber sobre eles mesmos. No começo, percebemos que há uma cumplicidade e sintonia muito grande entre eles e é nítido que existe espaço para um romance ali, mesmo que eles evitem enxergar isso. É muito interessante o que vem a seguir, dos dois se negando a ver o que é tão perceptível, por medo, pelo desconforto de trair seus ideais tão bem estruturados até ali. Por receio de não mais se encaixar no padrão de uma sociedade tão consolidada. Neste sentido, é angustiante vê-los se afastando. É muito forte as cenas em que eles, reunidos, não cruzam mais os olhares. Evitam se falar, evitam se tocar. O filme, então, vai criando um abismo entre os dois, um espaço doloroso que poderia ser preenchido por amor, mas nunca é.

É curioso a escolha de Dolan por não nos permitir ver o tal beijo. Existe um universo inteiro ali naquele momento e somos privados de compartilhar. Gosto desta saída porque é como se aqueles instante, tão particular, na verdade, pertencesse somente à eles. Vemos o que dele resulta, que sentimento desperta, mas não o ato em si. Existe poesia em “Matthias e Maxime” que se revela nessas saída sutis. Como quando a natureza surge para ilustrar o estado de seus protagonistas. Assim que Matthias dá o beijo, ele se perde em um extenso mar. Mergulha como se fugisse de tudo aquilo, perdido na solidão daquele local. Já mais perto do final, quando os dois, enfim, se beijam realmente, surge o imenso barulho de chuva e trovão, dando som à excitação dos dois diante de algo tão novo e tão bom, tão completo.

O filme registra um instante de mudança da vida de Maxime. Neste instante de despedida, logo que ele está indo morar em outro local, vem a necessidade de transformação, de preencher aquilo que antes era vazio. Em uma das primeiras cenas, ele avista uma propaganda de margarina, que estampa a família tradicional perfeita. Maxime, desde o começo, se mostra descontente com este padrão, dentro de si busca por uma alternativa, não há espaço para ele neste universo “ideal”. Maxime finalmente se encontra em Matthias e é belo esta percepção dos dois. De se entregar a alguém que faça parte de seu mundo. Este é o filme mais introspectivo de Xavier Dolan, que ao longo de sua carreira, sempre deu voz ao amor em todas as suas possíveis formas. “Matthias e Maxime” pode até ser um trabalho menor e mais simples em sua filmografia, mas é, com certeza, mais um grande acerto. Um respiro necessário à sua carreira, repleto de poesia, honestidade e sensibilidade.

NOTA: 8

  • País de origem: Canadá
    Ano: 2019
    Duração: 129 minutos
    Título original: Matthias et Maxime
    Distribuidor: Mubi
    Diretor: Xavier Dolan
    Roteiro: Xavier Dolan
    Elenco: Xavier Dolan
    , Gabriel D’Almeida Freitas, Anne Dorval