Crítica: No Ritmo do Coração

A voz que vem de dentro

Grande revelação do último Festival de Sundance, “No Ritmo do Coração” é um raríssimo exemplar de um remake necessário. Sete anos o separa do original, o francês “A Família Bélier”, e nesse tempo o cinema mudou. Em uma trama que coloca ao centro uma família de surdos, não ter atores surdos em cena é uma escolha equivocada. É então que a nova obra vem com um passo à frente, abrindo espaço para um elenco que, de fato, vivencia aquelas situações e traz emoção à cena, traz honestidade. Além desta questão da representatividade, a diretora Sian Heder constrói um produto que tem vida própria e encanta. 

Apesar da leveza com que a trama segue, existe aqui um conflito poderoso que vai, aos poucos, nos dando aquele aperto no peito. Sem jamais forçar uma dramaticidade, o longa conquista pela sensibilidade ao narrar a história da jovem Ruby (Emilia Jones), que decide apostar em seu talento na música. A grande questão é que ela é a única pessoa que não é surda em sua família e sempre viveu pelo peso de ser responsável por eles no pequeno negócio de pesca que possuem no local. 

Ruby é o elo de sua família com o resto do mundo, é quem os conecta, quem os torna compreensíveis aos outros. Em uma fase de transição e amadurecimento, ela entende que precisa seguir seu próprio caminho, ter sua própria voz. E ela tem muito o que dizer quando ninguém ao seu redor a pode ouvir. É forte esse conflito e esse dilema enfrentado pela protagonista, porque nunca depende de decisões fáceis. Seguir seu sonho é quase como abandonar, rejeitar tudo aquilo que vem com tanto carinho. O roteiro é belíssimo e avança por essas nuances com delicadeza, sempre respeitando seus personagens, o bom humor e sem frear essa capacidade de nos faz chorar. O elenco também é ótimo, incomodando apenas a presença afetada de Eugenio Derbez. 

“O Ritmo do Coração” é lindo e atinge nosso coração com força. Não foge de muitas convenções do gênero, mas é tudo tão bem guiado que facilmente compramos o que nos oferece. A sequência em que Ruby canta para seu pai e ele tenta sentir suas cordas vocais sintetiza bem o poder dessa obra. São escolhas simples, mas que possuem grandes significados. Um filme adorável, poderoso, que me levou às lágrimas e me fez ter a certeza de que estava diante de uma das produções mais belas desse ano.

NOTA: 9,0

País de origem: EUA
Ano: 202
1
Título original: CODA
Duração: 111 minutos
Diretor: Sian Heder
Roteiro: Sian Heder
Elenco: Emilia Jones, Marlee Matlin, Daniel Durant, Troy Kotsur, Ferdia Walsh-Peelo, Eugenio Derbez

Crítica: The 40-Year-Old Version

A voz da mulher preta

Comédia premiada no Festival de Sundance, “The 40-Year-Old Version” é facilmente uma das produções mais interessantes que a Netflix lançou recentemente. Esta é a estreia de Radha Blank na direção, que entrega aqui algo extremamente pessoal, imprimindo, em seu fascinante texto, sua luta diária como mulher, preta e artista. Ela se coloca como protagonista da própria história e traz honestidade em cada um de seus fortes relatos.

Filmada em preto e branco, a obra faz um recorte na vida de Radha que, próxima de completa 40 anos, começa a refletir sobre o rumo de sua carreira como escritora, que mesmo tendo vencido um importante prêmio da literatura – aos 30 anos – nunca teve, de fato, espaço para realizar sua arte. O longa narra este momento em que ela busca por renascimento e, principalmente, ter finalmente sua voz ouvida. “The 40-Year-Old Version” é o manifesto desta grande mulher. De forma ousada e sincera, Radha aponta uma ferida antiga dentro da arte, seja no cinema, seja no teatro, onde o preto apenas tem espaço para ilustrar uma pobreza estereotipada e servir de troféu para histórias de brancos salvadores. Ela traz humor em seu relato, sem jamais diminuir o impacto de seu poderoso e necessário discurso.

Debute na direção, Blank entrega um produto fascinante, bem conduzido. Seus discursos transbordam naturalidade e encanta ao colocar em cena, instantes tão prazerosos de assistir, guiados por personagens tão carismáticos. Um filme brilhante que, definitivamente, precisava existir.

NOTA: 9

  • Duração: 129 minutos
    Disponível: Netflix
    Roteiro: Radha Blank
    Direção: Radha Blank
    Elenco: Radha Blank, Peter Y. Kim, Reed Birney

Crítica: Culpa

O som que uma história tem

“Culpa” é aquele produto simples, pequeno mas que nos leva à lugares inimagináveis. Um belo exercício cinematográfico, que mesmo filmado em um único espaço, consegue entregar um thriller potente, envolvente, hipnotizante e com surpreendentes reviravoltas.

É sempre interessante quando o cinema nos apresenta este tipo de ideia. Um conceito sempre arriscado mas fascinante se bem realizado. Um personagem de destaque, um cenário fechado e nada além disso. Aqui temos o policial Asger (Jakob Cedergren), que aparentemente está sofrendo um processo judicial e trabalha como atendente no setor de emergência. O plot principal se dá início quando ele recebe a ligação de Iben, uma mulher desesperada que está sendo vítima de um sequestro. Com pouquíssimas informações sobre o caso, Asger precisa correr contra o tempo para que uma tragédia maior não aconteça.

A experiência de ver “Culpa” é tão intrigante e mágica como a que temos ao ler um livro. O roteiro, tão rico e brilhantemente bem escrito, nos permite viajar em suas ideias, construindo em nossa mente tudo aquilo que o filme não nos revela. Tudo acontece através de ligações e o som que cada evento emite é aquilo que ativa nossa imaginação. Sequestro, fuga, dramas familiares. Um mundo inteiro dentro daquela chamada e é fantástico como o filme não decai nunca, sempre nos mantendo atentos aos acontecimentos e sempre nos levando para uma nova direção. As reviravoltas são ótimas e muito bem conduzidas pelo texto. E claro, destaque para o ator Jakob Cedergren, que é nosso ouvido e nosso olhar diante de tudo. É um ator carismático e que nos leva junto em sua jornada. Trata-se, aliás, de um grande personagem, cheio de dúvidas e dilemas morais que precisa enfrentar dentro daquele tempo e espaço limitado.

“Culpa” surpreende por alcançar proporções enormes mesmo dependente de pouquíssimos recursos. Tudo é trabalhado através de sugestões. Uma história tensa que cresce sem a necessidade de mostrar seus reais protagonistas. A única imagem que temos é a do herói, que diferente das perseguições hollywoodianas, ele está incapaz de encarar as ruas e resolver por suas próprias mãos. Sua voz é sua única arma. É incrível, neste sentido, como a direção precisa buscar na montagem, som e fotografia os artifícios necessário para nos manter atentos. E consegue. Temos aqui, no fim, um thriller fascinante, incrivelmente bem conduzido e um exercício de linguagem prazeroso. É brilhante. É o cinema independente em sua melhor forma.

NOTA: 8,5

  • País de origem: Dinamarca
    Ano: 2018
    Duração: 85 minutos
    Título original: Den skyldige
    Distribuidor: California Filmes
    Diretor: Gustav Möller
    Roteiro: Gustav Möller
    Elenco: Jakob Cedergren

Crítica: Oitava Série

Por trás do filtro

É curioso o que há por trás de “Eighth Grade”. O diretor Bo Burnham – hoje, com apenas 30 anos – começou sua carreira como youtuber, onde pôde expressar seus talentos tanto na música como na comédia. Eis que ele resolveu se arriscar no cinema para contar a história de uma garota desajustada que, enquanto publica seus vídeos na internet, precisa lidar com as dificuldades em conviver com tudo aquilo que é real. A grande surpresa é que essa sua empreitada deu muito certo, entregando um texto muito sensível, profundo e assustadoramente atual. Ele acaba realizando um retrato muito honesto sobre esta transição da infância para adolescência, nos fazendo identificar e reconhecer nossas próprias inseguranças e receios na protagonista.

Na escola, Kayla (Elsie Fisher) é invisível. Suas tentativas de se enturmar são sempre frustrantes e estar cercada pelos jovens de sua idade parece um interminável pesadelo. Em seu quarto, isolada do mundo, é onde experimenta a liberdade, é onde se sente bem sendo ela mesma. Com a câmera ligada, filtro na cara (escondendo as marcas de suas espinhas), Kayla grava uma série de vídeos tentando ensinar aqueles com a mesma idade a enfrentarem os obstáculos de se estar na oitava série e serem felizes sem medo dos julgamentos. É muito interessante como o filme vai mesclando os depoimentos da protagonista em seus vídeos, com a maneira que ela age diante dos outros. Há um contraste enorme, porque às vezes nem Kayla é capaz de ouvir os próprios conselhos. A realidade é dura e ouvir a própria voz nem sem sempre é um caminho possível.

É assustadoramente realista o cenário de “Eighth Grade”, o que nos permite ativar nossas lembranças mais desconcertantes e criar uma empatia muito forte por Kayla e essa difícil jornada que precisa enfrentar diariamente, dentro de um ambiente tão hostil e nada receptivo. Que felicidade, então, poder ver uma atriz tão jovem e tão sincera em cada atitude que expressa na tela. Elsie Fischer é um grande achado e consegue transmitir toda esta insegurança de ter sua idade, entregando uma performance fantástica e hipnotizante. Seu jeito tímido de agir na escola e a forma atrapalhada com que fala diante do susto de ter que conversar com outra pessoa. Ela é um reflexo preciso de muitas garotas e garotos que são engolidos pela própria solidão. Até mesmo a arrogância com que trata seu pai e o silêncio que se instaura em seu lar enquanto ela não larga o celular, acaba revelando um olhar melancólico sobre como a tecnologia tem afetado as relações familiares. Aliás, a maneira como as redes sociais entram neste contexto é interessante também. Não só permite que a jovem construa uma versão mais confiante de si mesma, como cria esta falsa sensação de que para ter novos amigos é preciso interagir em seus perfis online.

A obra acaba, infelizmente, nos distanciando algumas vezes quando opta por soluções não muito críveis, como a melodramática cena em que Kayla se abre com o pai. No entanto, são instantes isolados que não diminuem o impacto que o filme causa em nós. Acredito que o próprio diretor não tivesse noção do quanto ele alcançaria com “Eighth Grade”, logo que acaba por construir um estudo fascinante e relevante dos dias de hoje. Diz muito sobre o que fomos e sobre o que os jovens atualmente são. Bo Burnham escreve com muita sensibilidade e coragem essa passagem, entregando um produto cruel, humano e dolorosamente honesto em cada sentimento e receio exposto. Não é exagero afirmar que temos aqui um dos retratos mais fieis sobre a adolescência, triste mas imensamente doce e terno. Ao fim, aquela pequena garota acaba nos deixando uma bela e simples lição mas que esquecemos com facilidade: independente da merda que esteja enfrentando agora, vai passar! Uma hora passa, tudo passa.

NOTA: 8,5

  • País de origem: EUA
    Ano: 2018
    Duração: 93 minutos
    Título original: Eighth Grade
    Distribuidor: –
    Diretor: Bo Burnham
    Roteiro: Bo Burnham
    Elenco: Elsie Fisher, Josh Hamilton