Crítica | Pinóquio por Guillermo del Toro

A imperfeição dos detalhes

Pinóquio, criação de Carlo Collodi em 1883, sempre foi um personagem que despertou curiosidade do público e fascínio do cinema, que contou essa história em inúmeras adaptações. Ainda assim, é muito interessante poder chegar aqui e ver a visão de Guillermo del Toro, que deixa claro todo o amor e carinho que tem pela jornada do menino esculpido em madeira. É possível enxergar todo o suor da equipe nesse irreparável stop motion.

A introdução de “Pinóquio” já emociona quando revela a relação de Gepeto com seu filho, entregando ali um tom melancólico que se mantém durante a obra. Tudo o que vem adiante é mágico, comovente e nos mantém atentos, não só pelo o poder da trama como pelo prazer de assistir esse cinema tão rigoroso de del Toro e Mark Gustafson. É chocante toda construção dos cenários, personagens e essa rigidez de até mesmo simular as imperfeições, tornando tudo extremamente realista. É arte em sua forma mais genuína.

Ao ganhar vida, Pinóquio tenta desbravar esse mundo novo do qual ele tem tanta curiosidade, mesmo que vá contra a pessoa que ele mais ama, seu pai. Ele comete alguns erros no caminho e precisa repará-los. “Ser um menino de verdade” nunca é um desejo seu e tornar-se humano acaba sendo uma consequência de suas ações e de seus sentimentos tão puros como amor e altruísmo. O roteiro desenha muito bem essas transições e como a transformação não vem apenas do protagonista, mas também na vida daqueles que o cercam, que são impactados por seus atos de bondade.

É interessante como toda essa jornada é vista pelo olhar do Grilo (incrivelmente dublado por Ewan McGregor), e como até mesmo ele, como narrador, tão acostumado a contar sobre a si mesmo, se permite ver a beleza do outro e tudo o que um menino de madeira tem a lhe ensinar. “Pinóquio” é sobre filhos imperfeitos e pais imperfeitos. É também sobre vida e morte e como tudo o que vivemos aqui é uma fração pequena diante desse mundo imenso, que começa e logo acaba. O que torna o protagonista humano também é compartilhar dessa previsibilidade de tempo, de viver e não saber quando é o fim.

NOYA: 8,5

País de origem: Estados Unidos, México
Ano: 2022
Titulo original: Guillermo del Toro’s Pinocchio
Duração: 117 minutos
Disponível: Netflix
Diretor: Guillermo del Toro, Mark Gustafson
Roteiro: Guillermo del Toro, Patrick McHale
Elenco: Gregory Mann, Ewan McGregor, David Bradley, Tilda Swinton, Ron Perlman

Crítica: A Vida Extraordinária de David Copperfield

O observador de histórias

Com grande elenco e uma narrativa dinâmica, “A Vida Extraordinária de David Copperfield” vem com o intuito de trazer uma nova roupagem a um dos maiores clássicos do autor britânico Charles Dickens. A adaptação, que vem recheada de humor e personagens caricatos, também pretende ser uma homenagem ao romancista, logo que a jornada deste excêntrico protagonista tem tons autobiográficos.

Dev Patel é quem dá vida a David Copperfield. É um personagem clássico, que enfrenta diversas fases na vida, desde maus tratos por seu padrasto, exploração no trabalho, até enfrentar dificuldades quando adulto. É ele se encontrando nesse mundo, buscando sua própria voz, sua identidade e seu talento como contador de histórias. Copperfield encontrará diversas pessoas em seu caminho, cada uma com suas características peculiares do qual ele observa com muita atenção. Tudo isso é ilustrado com um belíssimo visual, que espanta pela riqueza de cores e detalhes. Os figurinos e cenários são de uma beleza hipnotizante.

Encontramos aqui uma obra ambiciosa, que pretende ser épica, mas infelizmente não tem força. Seu fôlego se desgasta rápido e logo nos vemos presos a inúmeras situações do qual não sentimos nenhuma conexão ou interesse. Armando Iannucci, criador e roteirista da série Veep, parecia a escolha certa para o projeto, mas ainda que ele capriche na direção, seu roteiro não tem vida. Ele acelera o passo para dar tempo de contar tudo o que pretende, mas esses tantos personagens que nos apresenta dentro desse universo tão lúdico, pouco desperta afeição ou algum tipo de sentimento. Vemos belas palavras condensadas em um texto que pouco diz.

Dev Patel é um ótimo ator e aqui se esforça, apesar de ser um protagonista confuso e não muito interessante. Ele divide a cena com um grandioso elenco que faz a obra valer mais a pena. Tilda Swinton está impecável. Temos ainda boas presenças de Hugh Laurie, Peter Capaldi e da carismática revelação de Rosalind Eleazar.

“A Vida Extraordinária de David Copperfield” falha nesta missão de modernizar a literatura de Charles Dickens. Acerta na produção, que é deslumbrante, mas peca na construção de seu universo e nesses tantos personagens que tão pouco nos importamos.

NOTA: 6,0

País de origem: EUA, Reino Unido, Irlanda do Norte
Ano: 2019

Título original: The Personal History of David Copperfield
Duração: 119 minutos

Disponível: HBO Max
Diretor: Armando Iannucci
Roteiro: Armando Iannucci, Simon Blackwell
Elenco: Dev Patel, Hugh Laurie, Peter Capaldi, Tilda Swinton, Morfydd Clark

Crítica: Um Mergulho no Passado

Passado, presente e futuro.

Inspirado no filme francês “La Piscine” de 1969, temos aqui uma versão ousada e bastante provocativa. Os atores se destacam em uma trama intrigante que envolve quatro personagens, vividos pelos britânicos Tilda Swinton e Ralph Fiennes, pela norte americana Dakota Johnson e pelo belga Matthias Schoenaerts. Gosto desses filmes que me lembram uma peça de teatro, que não permite que seus personagens escapem de seus limites muito bem demarcados, sendo obrigados e se enfrentarem dentro deste pequeno espaço. O cenário é uma província italiana, com belas paisagens e uma casa que abriga uma piscina. É nesta piscina que grandes eventos ocorrem, que sentimentos são expostos e algumas verdades são ditas.

Marianne Lane (Swinton) é uma famosa cantora de rock, que deixou seus anos dourados para trás e tenta viver tranquilamente com seu namorado (Schoenaerts). Seu novo estilo de vida pacato, porém, não convence seu ex, Harry (Fiennes), que resolve, sem aviso prévio, passar uns dias de descanso em sua casa, ao lado de sua recém descoberta filha (Johnson). O filme, então, narra os acontecimentos imprevisíveis destes dias intensos, onde as lembranças do passado retornam e os passos do futuro se tornam incertos.

Cada um dos dois lados de um EP possui seis canções. O roteiro faz aqui uma interessante analogia a isso, onde a protagonista, cantora de rock, teve sua vida amorosa dividida por dois homens, cada um com suas características, durante seis anos cada. E cada lado deste álbum possui seus altos e baixos e ambos representam uma vida completamente diferente. Marianne, então, precisa lidar, dentro de um espaço pequeno, com seu passado e presente. Neste sentido, é conflituoso todas essas relações, onde nos olhares e pequenos gestos parecem esconder toda uma história e inúmeras intenções não reveladas. Todos os personagens aqui são ambíguos e nada é claro o suficiente para qualquer tipo de julgamento. Seja do pai que trata a filha desconhecida com um certo desejo, seja da ninfeta que parece seduzir tudo aquilo que é proibido, seja do homem que não aceita o rumo que a vida de sua ex tomou. Nada exige resoluções fáceis e o roteiro brilha quando insere naturalidade e espontaneidade neste grupo de indivíduos, que age com uma certa felicidade sobre o momento atual, mas que nitidamente lutam por dentro por uma nova ruptura, uma mudança, um novo rumo que lhes tire de onde estão.

O química entre os atores funciona e é um dos pontos fortes do filme. O elenco oferece atuações sólidas e se entregam a seus belos personagens. Dakota Johnson surpreende, aparece sexy e distinta de sua Anastasia de “50 tons” e isso é ótimo. Matthias Schoenaerts sempre introspectivo, mas não decepciona. No entanto, o palco é mesmo dos veteranos Ralph Fiennes e Tilda Swinton, que brilham, divertem e seduzem em cena. Aliás, todos eles se despem literalmente e o diretor revela seus corpos nus de forma natural, às vezes até impactante, mas sem glamour e que, de certa forma, é ousado por quebrar alguns tabus do cinema atual.

A Bigger Splash” foi o primeiro sinal de Luca Guadagnino, lançando posteriormente filmes como “Me Chame Pelo Seu Nome” e “Suspiria”. Aqui ele já prova ser um excepcional diretor e mesmo tendo um mãos uma trama tão simples – brilhantemente escrita, aliás – entrega sequências revigorantes e cheias de energia e personalidade. É sexy, insano, visceral. A cena em que Ralph Fiennes dança, enquanto escuta sua amada canção do Rolling Stones, sintetiza a força da obra. É um momento estranhamente memorável, que remete a liberdade dos bons musicais e encanta por ser tão vibrante.

NOTA: 8,5

  • País de origem: EUA, França, Itália
    Ano: 2015
    Duração: 125 minutos
    Título original: A Bigger Splash
    Distribuidor: –
    Diretor: Luca Guadagnino
    Roteiro: David Kajganich
    Elenco: Tilda Swinton, Ralph Fiennes, Matthias Schoenaerts, Dakota Johnson.

Crítica: Expresso do Amanhã

Alguns vagões são mais iguais que outros

Baseado na grafic novel francesa “Le Transperceneige“, o longa marca o primeiro filme falado em inglês do sul-coreado Bong Joon-ho (Parasita, 2019), que conta ainda com a produção de Chan-wook Park (Oldboy, 2003). Visualmente estilosa, a obra traz um olhar bastante original sobre um mundo pós-apocalíptico, que consegue, com seu roteiro extremamente inteligente, fazer duras críticas à sociedade atual.

Em um futuro pouco distante, o governo falha em uma missão de cessar o aquecimento global, culminando no congelamento total do planeta. Wilford (Ed Harris) é um engenheiro que elaborou a construção de um trem que acabou por salvar toda a população, e em uma espécie de “Arca de Noé”, a embarcação levou os últimos sobreviventes. Sem destino, os passageiros são separados de acordo com suas classes sociais, e aqueles que não conseguiram comprar sua entrada, vivem na “cauda”, ou seja, nos últimos vagões, vivendo em situações precárias e se alimentando de uma pequena barra de proteína. A trama se inicia, quando, 18 anos depois, a população da cauda resolve começar mais uma rebelião, liderados por Curtis (Chris Evans), afim de chegarem até os primeiros compartimentos, no local onde poderão controlar as máquinas, onde finalmente iniciarão a tão almejada revolução.

O diretor Bong Joon-ho realiza aqui um excelente trabalho. Sempre fica aquela expectativa de como um diretor se comporta fora de seu país de origem e aqui ele não decepciona. Muito pelo contrário, traz frescor e originalidade para um tema já muito explorado pelo cinema, o mundo pós-apocalíptico. A presença do produtor Chan-wook Park fez diferença também. Alguns instantes remetem ao seu clássico “Oldboy”, principalmente nas sequências mais violentas, esteticamente bem interessantes, com forte apelo visual, que abusa da câmera lenta e não poupa nosso olhar de nada. Aliás, grande parte desta originalidade de “Snowpiercer” está em seu visual, logo que, ao seu decorrer, acompanhamos uma rebelião que se inicia na ponta do trem e caminha até sua frente. A cada vagão que nos deparamos, vemos um novo universo, representando cada classe social, cada grupo. Esta diferenciação faz parte de sua dura crítica, já que na teoria todos vivem em uma “mesma sociedade”, e assim, a obra nos revela o belíssimo e complexo trabalho da direção de arte. Curioso e ao mesmo tempo fascinante a descoberta desses “mundos”. Passamos pelo visual da classe baixa, que remete ao steampunk, sombrio e caótico, até a alta sociedade, com seu exagero de cores e texturas. Esta viagem que o filme nos proporciona é o que o torna mais interessante, por centrar sua trama num local fechado, e deixar que as diferenças e conflitos aconteçam ali. A cada novo vagão, uma nova surpresa. E é isso que torna a experiência de assisti-lo tão revigorante, tão surpreendente, e por diversos momentos, tão tensa, eletrizante.

Dentre essas boas surpresas que “Expresso do Amanhã” nos presenteia é seu elenco. Já de cara, nos deparamos com um renovado Chris Evans, que se mostra, pela primeira vez, um grande ator. Ainda encontramos com a forte presença de John Hurt, Jamie Bell, Octavia Spencer, Alison Pill e Ed Harris. Ao decorrer da trama, Tilda Swinton surge em uma surpreendente aparição, onde sua comicidade e sua atuação um tanto quanto caricata torna as críticas feitas pelo roteiro ainda mais aguçadas, mais provocativas. Dentre os protagonistas, vemos ainda os sul-coreanos Kang-ho Song e Ah-sung Ko, que trabalharam juntos com o diretor no terror “O Hospedeiro”.

“Expresso do Amanhã” peca um pouco em seu ato final, onde com sua longa duração e com sua trama, até então, bem detalhada, me pareceu apressada em sua conclusão, Apesar de ser um bom final, não ficou a altura da incrível trama que construiu até ali. Seu término é bem pessimista, de certa forma, deixa um vazio. O filme revela este trem como um ecossistema, onde tudo precisa estar no seu devido lugar, onde a ordem é necessária, onde a fuga e a liberdade causará a morte. Ainda há a existência deste ser místico, Wilford, que salvou a população do sofrimento, que controla tudo e onde a população do trem aprendeu a adorá-lo. É a ficção, mais uma vez, usando de uma trama futurística para denunciar nosso presente. E são críticas escancaradas, duras, que relata sobre esta humanidade com classes sociais tão divididas, do poder e manipulação que aqueles que estão na frente exercem sobre os demais. Simplesmente brilhante!

NOTA: 8,5

  • País de origem: Coreia do Sul, EUA, França
    Título original: Snowpiercer
    Ano: 2013
    Duração: 126 minutos
    Distribuidor: Playarte Pictures
    Diretor: Bong Joon-ho
    Roteiro: Bong Joon-ho, Kelly Masterson
    Elenco: Chris Evans, Song Kang-ho, Jamie Bell, Tilda Swinton, Ed Harris, Octavia Spencer, Alison Pill, John Hurt