Crítica | Identidade

A cor dos privilégios

Baseado no elogiado livro de Nella Larsen, “Identidade” marca o debute na direção da atriz Rebecca Hall. É um primeiro passo audacioso por explorar um universo tão complexo, conseguindo, ainda, extrair belíssimas atuações das duas protagonistas.

Filmado em preto e branco e na proporção de tela 4:3, aquele mais quadrado, o longa parece vir de outro tempo. Seja, ainda, pela calmaria e interpretações, tudo nele indica esse cinema da época em que relata, quando se discutia o american way of Life e o jazz e a moda estavam tão presentes na arte. É uma produção elegante, até um tanto cansativa, preciso dizer, mas imensamente intrigante por seus temas.

A trama envolve o reencontro de duas velhas amigas nos anos 20. Como sendo uma mulher negra, Irene (Tessa Thompson) se choca ao perceber que Clare (Ruth Negga), se passa por branca e vive sob os privilégios de uma identidade que não é sua. Esse encontro inesperado abre uma rachadura na forma como ambas vivem naquela sociedade. Irene tenta manter uma pose de felicidade, acreditando nesse mundo perfeito para os negros nos Estados Unidos, no entanto, com a aproximação de sua amiga, essa sua crença vai se fragmentado e ela passa a refletir sobre sua existência, sobre como seria se estivesse do outro lado.

São duas mulheres desconexas na própria vida. E quanto mais Irene vê Clare se apropriando de sua rotina, mais ela se afasta, mais se sente sendo substituída por aqueles que ama, por aquele padrão de vida que ela achava ser tão correto. A protagonista, então, se afunda nesse campo entre receios, incertezas, inveja e até mesmo de desejos reprimidos, visto que sua aproximação com a amiga vai além de algo apenas fraternal. Além desse interessante debate sobre colorismo e também sobre como nunca saberemos como é estar na pele do outro, o roteiro se aprofunda na complexidade dessas relações, alçando um final enigmático. Causa uma certa estranheza pela resolução apressada, ao mesmo tempo em que causa uma angústia, uma revolta.

Uma pena, porém, pela baixa divulgação, que as atuações de “Identidade” não alcancem as grandes premiações. Tessa Thompson nunca esteve tão incrível como aqui, revelando tanta coisa com seus olhares e silêncio. Uma interpretação intimista e poderosa. Ruth Negga é outra atriz que merecia mais atenção. Sua presença é hipnotizante. Vê-las em cena é um presente e o texto extrai o que há de melhor nas duas. Um filme fascinante por trazer temas que, confesso, nunca vi sendo debatidos no cinema. Intriga ao se sensibilizar por sentimentos tão difíceis de serem expostos.

NOTA: 8,0

País de origem: EUA, Reino Unido
Ano: 2021

Título original: Passing
Duração: 98 minutos
Disponível: Netflix
Diretor: Rebecca Hall
Roteiro: Rebecca Hall
Elenco: Tessa Thompson, Ruth Negga, André Holland, Bill Camp, Alexander Skarsgård

Crítica: Desculpe Te Incomodar

A voz do homem branco

Crítica mordaz ao capitalismo, “Desculpe Te Incomodar” seria cômico se não fosse tão triste. Ainda que nos faça rir de desespero diante das situações que narra, também nos deixa pensativos sobre essas relações que traçamos com a realidade. O diretor e roteirista estreante Boots Riley desenvolve uma obra única, peculiar e mesmo que preze pela estranheza, nos faz conectar com essas situações e dilemas tão comuns da vida adulta, acertando ao transformar essa comédia em um intrigante terror distópico. É um caminho arriscado mas que funciona perfeitamente no seu brilhante texto. Um filme provocativo e essencial.

Lakeith Steinfeld está ótimo na pele de Cassius, um cara comum que mora em uma garagem e não vê muitas perspectivas sobre vencer na vida. Até que ele consegue um emprego como operador de telemarketing em uma empresa sombria e começa a se destacar pelo seu dom em vendas e por saber falar com a voz de um homem branco. O grande conflito nasce quando um grupo de funcionários decide reivindicar melhorias no trabalho e, pelo receio de perder a oportunidade de crescimento profissional, Cassius vira as costas para a luta de seus iguais.

Eles queriam que Cassius fosse a voz da revolução, mas ele é bom demais desenvolvendo a voz dos brancos. O protagonista literalmente desenvolve esse poder, pois somente assim poderia vencer sendo um homem negro. Ele é seduzido para estar no topo da cadeia alimentar, se vendendo para ter, iludido por conquistar tudo o que jamais teria, seguindo exatamente o script. Sendo como todos os outros, querendo possuir o que todos buscam. É muito rico esse conflito que se desenha, pois por mais incômodo que seja as escolhas do personagem, o compreendemos, faz sentido diante de toda sua trajetória. E, de certa forma, vibramos para que ele finalmente se encontre.

Com claras referências ao cinema de Michel Gondry, a obra traz uma arquitetura lúdica, de efeitos práticos e uma narrativa surreal, rapidamente nos remetendo a filmes como “A Espuma dos Dias” e “Rebobine, Por Favor”. Exige um nível de abstração grande do público, mas se permitir levar pela sua bizarrice, a experiência pode ser extasiante. Diante de suas criativas invenções e uma montagem ágil, a obra flui como um sonho esquisito, onde nem tudo possui uma sequência lógica. Diverte e nos faz ter a certeza de que estamos diante de algo muito novo e único. Alguns instantes são impagáveis como a participação de Cassius em um programa de TV ou quando um grupo de brancos pede para ele cantar rap. Sim, é tudo assustador nesse nível.

“Desculpe Te Incomodar” vai ganhando tons cada vez mais obscuros. Surpreende e termina de forma brilhante, acentuando suas belas críticas. É uma obra poderosa, que nos deixa reflexivos diante de suas fantasias, diante de suas indagações. O texto revela essa escravidão que se mantém presente mas com novas nomenclaturas, dentro dessas corporações que vendem discursos inspiradores sobre time e dedicação quando visam apenas a exploração e lucro. Nesse sistema, todos estamos no andar de baixo, seguindo ordens e produzindo as conquistas daqueles que já venceram.

NOTA: 9,5

País de origem: EUA
Ano: 2018
Título original: Sorry To Bother You
Disponível: Telecine Play
Duração: 105 minutos
Diretor: Boots Riley
Roteiro: Boots Riley
Elenco: Lakeith Stanfield, Tessa Thompson, Armie Hammer, Steven Yeun, Danny Glover