Crítica: Let Them All Talk

O improviso da vida

Steven Soderbergh é um dos cineastas mais inquietantes de nosso tempo. É curioso como um diretor veterano ainda se arrisca em produções menores, de baixo orçamento, sempre disposto a oferecer algo novo. Foi em 2018, impressionado pelas novas tecnologias, que ele trocou sua câmera pelo IPhone. É assim que ele lança “Let Them All Talk”, desafiando o cinema tradicional que conhecemos. Equipe enxuta, um celular na mão e uma filmagem que durou uma semana.

O longa conta com o roteiro da estreante Deborah Eisenberg, que escreveu poucas páginas com algumas sequências-base e deixou que os atores improvisassem o resto. O filme quase todo acontece em um transatlântico, onde uma renomada escritora (Meryl Streep) aceita fazer uma viagem para a Inglaterra para receber um prêmio. Ela tem a permissão de levar mais três acompanhantes, é então que entra em cena seu sobrinho e auxiliar Tyler (Lucas Hedges) e duas amigas que não vê por trinta anos, Roberta (Candice Bergen) e Susan (Dianne Wiest).

“Let Them All Talk” é um exercício cinematográfico intrigante, ainda mais quando Soderbergh também se responsabiliza pela fotografia e montagem. É um trabalho soberbo, que jamais escancara suas tantas limitações. Ele ousa nessa possibilidade do improviso também, deixando seus atores à vontade em cena. Nessa intenção de “deixar eles falando”, o longa acerta ao não ser verborrágico e apreciar o silêncio. É assim que o filme se torna um convite a desaceleração, a apreciarmos esse tempo pausado em que a trama segue. Navegamos por essas conversas e por esses desencontros dos personagens. Tem tudo para ser entediante para muita gente, mas de alguma forma me senti seduzido por esse universo e por esses diálogos tão naturais.

A obra mostra essas três mulheres se reunindo depois de um longo período. No entanto, são relações fragilizadas, que não sobreviveram a esse tempo de rompimento. Apesar de terem a mesma idade, cada uma vive um momento distinto na vida, com motivações e aspirações opostas. Enquanto Alice e Roberta travam uma disputa silenciosa ali, Susan parece ser o elo pacificador. Dianne Wiest brilha e entrega o melhor momento do filme em seu discurso inspirador sobre como todos são privilegiados por serem os últimos a verem as estrelas em seu estado natural. As três estão incríveis, na verdade, mas curiosamente Meryl acaba sendo ofuscada pelo carisma das duas coadjuvantes.

Acaba sendo um desperdício, então, juntar três atrizes fantásticas e não lhes entregar o devido espaço, onde tão pouco dividem a mesma cena. Uma escolha equivocada apostar na persona apática e abobalhada de Lucas Hedges quando seu personagem tem quase nada a dizer e, infelizmente, acaba tendo mais destaque do que queríamos e mais do que a obra pedia.

“Let Them All Talk” diverte com sua simplicidade e encanta pela naturalidade das situações. Flui na mesma velocidade da vida, sem encanto, sem grandes momentos, apenas sendo o que é. Pode não causar muito impacto em nós apesar das boas reflexões e diálogos, mas ainda assim é uma experiência agradável e um presente poder assistir três grandes atrizes na tela.

NOTA: 8,0

País de origem: EUA
Ano: 2020
Disponível: HBO Max
Duração: 113 minutos
Diretor: Steven Soderbergh
Roteiro: Deborah Eisenberg
Elenco: Meryl Streep, Lucas Hedges, Candice Bergen
, Dianne Wiest, Gemma Chan

Crítica: Contágio

O medo é contagioso

Quando um filme de 2011 se torna a obra obrigatória e uma das mais relevantes de 2020. “Contágio” é aquele conhecido sleeper hit, que passa despercebido quando é lançado e demora anos para conquistar o sucesso. Atualmente, é um dos mais baixados e pesquisados, isso porque notou-se as semelhanças do longa com o que vivemos nos dias de hoje com o surto do Coronavírus. É brilhante quando paramos para analisar como um produto de quase 10 anos atrás conseguiu desenhar com tamanha precisão e realismo o caminhar da humanidade diante de uma pandemia. De fato, tem muito mais impacto neste tempo, justamente porque olhamos para a tela e compreendemos tudo o que ele estava tentando nos dizer, mas só agora fomos capazes de entender.

O roteiro, que teve mais de 30 versões antes da entrega final, contou com a importante consultoria de estudiosos, jornalistas e epidemiologistas. Tudo isso para que conseguissem construir a expansão de um surto sem os exageros e fantasias de Hollywood. Assim como o Sars-Cov-2, o vírus do Covid-19, o vírus fictício MEV-1 – descrito no filme – tem explicação científica e extremamente plausível. A trama se inicia com a personagem de Gwyneth Paltrow, que ao retornar de uma viagem à Hong Kong, dissemina uma doença viral e que, em pouquíssimo tempo, infecta centenas de pessoas em diversos países. Os sintomas são muito parecidos com os de uma gripe, mas a morte é fatal. A partir deste ponto, o longa tenta investigar os passos anteriores desta paciente zero e compreender a origem do vírus, ao mesmo tempo em que cientistas e profissionais da saúde correm contra o tempo para pesquisarem e desenvolverem uma vacina capaz de salvar a população. Ainda temos a presença das autoridades que precisam encontrar soluções, em um curto prazo, para como a humanidade precisa agir diante do caos que se instaurou. Além do olhar da mídia e todas as interpretações que ela tem sobre o caso.

Chega a ser bizarro e assustador as semelhanças com o que vivemos hoje. É chocante ver como o roteiro consegue ser tão preciso e tão perto da realidade. Compreende com inteligência todos os aspectos que envolvem uma crise como esta, entregando muito mais que um entretenimento, mas um estudo de sociedade. Vai muito além do que simplesmente mostrar a trajetória de uma infecção. Revela como isso afeta o Governo, aqueles que trabalham com saúde e principalmente, como afeta a vida das pessoas comuns. “Com o pânico, o vírus será o menor de nossos problemas”, diz uma cientista em certo momento. “Contágio” é muito sobre como o medo se expande com mais rapidez e eficácia que qualquer doença. O surto, a paranoia, a incerteza do amanhã. Mais do que a crise dos supermercados e a ausência de tudo aquilo que consideramos básicos para nossa sobrevivência, o filme investiga a crise psicológica que nasce na população e os efeitos colaterais do confinamento.

Dirigido por Steven Soderbergh, “Contágio” é narrado por uma perspectiva bem ampla, sem se apegar a personagens ou nas atuações, ainda que conte com um elenco de peso. Matt Damon, Kate Winslet, Jude Law, Laurence Fishburne e Marion Cotillard passam na tela como meros coadjuvantes. O texto está mais interessado na situação como um todo e não, especificamente, na experiência pessoal de cada um. Talvez isso fruste porque não há como ter empatia a nada. Não há indivíduos para nos preocupar e nem histórias que nos apegamos. No entanto, isso não impede do filme ter seu impacto e sua relevância enquanto cinema. Pelo contrário. Soderbergh e sua produção encontram o tom perfeito e criam uma atmosfera tensa, fria e angustiante, digno de uma ótima ficção científica apocalíptica.

É compreensível do porquê “Contágio” ter se tornado tão relevante dos dias de hoje e isso só prova a imensa qualidade da produção. É brilhante quando o cinema tem, no meio de sua fantasia, o poder de ver o futuro com clareza. O filme se torna importante e poderoso quando, enfim, vivemos este futuro e, de fato, ele estava certo sobre muitas coisas. Ainda que a obra incite nossa paranoia, não deixa de nos entregar, também, um voto de confiança, de otimismo. Mais do que entender a ciência e os efeitos de um surto, o longa entende o poder do contato. Aquele abraço, aquele aperto de mão. Isto é básico para a humanidade e vamos lutar para que isso continue existindo.

NOTA: 8

  • País de origem: EUA
    Ano: 2011

    Título original: Contagion
    Duração: 107 minutos
    Distribuidor: Warner Bros.
    Diretor: Steven Soderbergh
    Roteiro: Scott Z.Burns
    Elenco: Laurence Fishburne, Jennifer Ehle, Matt Damon, Jude Law, Kate Winslet, Marion Cotillard, Gwyneth Paltow, Bryan Cranston, John Hawkes