Crítica: Expresso do Amanhã

Alguns vagões são mais iguais que outros

Baseado na grafic novel francesa “Le Transperceneige“, o longa marca o primeiro filme falado em inglês do sul-coreado Bong Joon-ho (Parasita, 2019), que conta ainda com a produção de Chan-wook Park (Oldboy, 2003). Visualmente estilosa, a obra traz um olhar bastante original sobre um mundo pós-apocalíptico, que consegue, com seu roteiro extremamente inteligente, fazer duras críticas à sociedade atual.

Em um futuro pouco distante, o governo falha em uma missão de cessar o aquecimento global, culminando no congelamento total do planeta. Wilford (Ed Harris) é um engenheiro que elaborou a construção de um trem que acabou por salvar toda a população, e em uma espécie de “Arca de Noé”, a embarcação levou os últimos sobreviventes. Sem destino, os passageiros são separados de acordo com suas classes sociais, e aqueles que não conseguiram comprar sua entrada, vivem na “cauda”, ou seja, nos últimos vagões, vivendo em situações precárias e se alimentando de uma pequena barra de proteína. A trama se inicia, quando, 18 anos depois, a população da cauda resolve começar mais uma rebelião, liderados por Curtis (Chris Evans), afim de chegarem até os primeiros compartimentos, no local onde poderão controlar as máquinas, onde finalmente iniciarão a tão almejada revolução.

O diretor Bong Joon-ho realiza aqui um excelente trabalho. Sempre fica aquela expectativa de como um diretor se comporta fora de seu país de origem e aqui ele não decepciona. Muito pelo contrário, traz frescor e originalidade para um tema já muito explorado pelo cinema, o mundo pós-apocalíptico. A presença do produtor Chan-wook Park fez diferença também. Alguns instantes remetem ao seu clássico “Oldboy”, principalmente nas sequências mais violentas, esteticamente bem interessantes, com forte apelo visual, que abusa da câmera lenta e não poupa nosso olhar de nada. Aliás, grande parte desta originalidade de “Snowpiercer” está em seu visual, logo que, ao seu decorrer, acompanhamos uma rebelião que se inicia na ponta do trem e caminha até sua frente. A cada vagão que nos deparamos, vemos um novo universo, representando cada classe social, cada grupo. Esta diferenciação faz parte de sua dura crítica, já que na teoria todos vivem em uma “mesma sociedade”, e assim, a obra nos revela o belíssimo e complexo trabalho da direção de arte. Curioso e ao mesmo tempo fascinante a descoberta desses “mundos”. Passamos pelo visual da classe baixa, que remete ao steampunk, sombrio e caótico, até a alta sociedade, com seu exagero de cores e texturas. Esta viagem que o filme nos proporciona é o que o torna mais interessante, por centrar sua trama num local fechado, e deixar que as diferenças e conflitos aconteçam ali. A cada novo vagão, uma nova surpresa. E é isso que torna a experiência de assisti-lo tão revigorante, tão surpreendente, e por diversos momentos, tão tensa, eletrizante.

Dentre essas boas surpresas que “Expresso do Amanhã” nos presenteia é seu elenco. Já de cara, nos deparamos com um renovado Chris Evans, que se mostra, pela primeira vez, um grande ator. Ainda encontramos com a forte presença de John Hurt, Jamie Bell, Octavia Spencer, Alison Pill e Ed Harris. Ao decorrer da trama, Tilda Swinton surge em uma surpreendente aparição, onde sua comicidade e sua atuação um tanto quanto caricata torna as críticas feitas pelo roteiro ainda mais aguçadas, mais provocativas. Dentre os protagonistas, vemos ainda os sul-coreanos Kang-ho Song e Ah-sung Ko, que trabalharam juntos com o diretor no terror “O Hospedeiro”.

“Expresso do Amanhã” peca um pouco em seu ato final, onde com sua longa duração e com sua trama, até então, bem detalhada, me pareceu apressada em sua conclusão, Apesar de ser um bom final, não ficou a altura da incrível trama que construiu até ali. Seu término é bem pessimista, de certa forma, deixa um vazio. O filme revela este trem como um ecossistema, onde tudo precisa estar no seu devido lugar, onde a ordem é necessária, onde a fuga e a liberdade causará a morte. Ainda há a existência deste ser místico, Wilford, que salvou a população do sofrimento, que controla tudo e onde a população do trem aprendeu a adorá-lo. É a ficção, mais uma vez, usando de uma trama futurística para denunciar nosso presente. E são críticas escancaradas, duras, que relata sobre esta humanidade com classes sociais tão divididas, do poder e manipulação que aqueles que estão na frente exercem sobre os demais. Simplesmente brilhante!

NOTA: 8,5

  • País de origem: Coreia do Sul, EUA, França
    Título original: Snowpiercer
    Ano: 2013
    Duração: 126 minutos
    Distribuidor: Playarte Pictures
    Diretor: Bong Joon-ho
    Roteiro: Bong Joon-ho, Kelly Masterson
    Elenco: Chris Evans, Song Kang-ho, Jamie Bell, Tilda Swinton, Ed Harris, Octavia Spencer, Alison Pill, John Hurt

Critica: Luce

Quando sua existência é um ato político.

Sucesso no Festival de Sundance, onde foi lançado ano passado, “Luce” é uma adaptação da peça teatral de JC Lee, que aqui também assina o roteiro. Através de um interessante thriller psicológico, a obra narra a conflituosa relação entre os quatro personagens centrais. É o tipo de filme que cresce lentamente, que inicia com uma problemática pequena e onde aquela situação simples acaba ganhando proporções cada vez mais assustadoras.

Luce é um jovem preto. Nasceu em uma região de combate na África e foi adotado por um casal norte-americano (Naomi Watts e Tim Roth). Aluno exemplar onde estuda, ele ministra debates, escreve discursos e está sempre distante de polêmicas. No entanto, a única que não o vê com bons olhos é a rigorosa professora Harriet Wilson (Octavia Spencer), que passa a questionar o caráter do bom moço depois de ler uma redação onde ele parece se identificar com uma ideologia violenta. A partir deste instante, os dois travam uma batalha silenciosa, tentando a todo custo manter as aparências e o lugar de respeito que ambos conquistaram.

Em certo momento, alguém questiona: “que homem preto tem o nome de Luce?” O nome, que vem de luz, lhe foi dado para se encaixar em seu novo espaço e apagar de vez seu passado. Viver na América, o lugar onde tudo é possível e sonhos se realizam. Nas aparências, ele vive dessa propaganda e age como modelo de tudo o que deu certo. O filme, então, cava essa superfície e nos convida a entender o que, de fato, há por traz do aluno exemplar. Sem procurar respostas, sabiamente, o roteiro não percorre os caminhos mais fáceis, nos fazendo questionar e a duvidar deste complexo personagem. Seria ele uma vítima de uma perseguição infundada? Seria ele um sociopata em ascensão? A provocação de “Luce” vem justamente disso, de nos fazer pensar tudo aquilo que evitamos. De dizer em voz alta o que fingimos não existir. Nos faz refletir nos tantos rótulos existentes em nossa sociedade e nessa pressão imposta por sermos tudo aquilo que esperam de nós. Não existem apenas santos e monstros, havendo inúmeras camadas entre essas duas divisões.

“Você não é preto. Você é o Luce”. Essa jornada do protagonista e a forma como todos o vêem me faz lembrar de como a América enxergava O.J.Simpson. O homem preto que gostava de musicais e jogava golfe nos fins de semana. Aquele que se encaixava perfeitamente ao moldes dos brancos e sentia orgulho por isso. Era um sinal de vitória, de conquista. Distante de seu mundinho, simultaneamente, ele era o símbolo da representação para a comunidade negra, mesmo que não estivesse com eles em nenhuma batalha, em nenhum momento de dor. Ninguém gostaria de ver Luce como vilão porque isso negaria as apostas. A sociedade precisa de heróis, dos ícones que exaltam o que deu certo.

Desta forma, “Luce” caminha como se uma bomba pudesse explodir a cada instante. A complexidade de cada personagem permite que a trama siga por caminhos imprevisíveis e torne este provocativo embate em uma experiência intensa, reveladora. O elenco de peso alavanca a potência, entregando excelentes atuações de Octavia Spencer, Naomi Watts e da belíssima revelação do jovem Kelvin Harrison Jr. Ele consegue causar empatia, ao mesmo tempo em que nos faz duvidar de suas boas ações. É aquele enigma que fascina, que seduz. A grande força da produção vem justamente de seu roteiro e desta capacidade de extrair de uma premissa tão simples, discursos tão poderosos, impactantes. O diretor Julius Onah concentra seus indivíduos em espaços fechados – assim como no teatro – seja entre as quatro paredes da casa, seja da escola. Os conflitos pulsam neste confinamento e onde todos são obrigados a se confrontar. Apesar dessas tantas qualidades, a obra acaba pecando em sua montagem. Não apenas pelo ritmo lento que pode cansar boa parte do público, como pela quebra de diversos momentos que poderiam causar um clímax mas são insistentemente interditados por uma outra sequência sem o mesmo valor. Impedindo, assim, o crescimento de uma tensão maior.

Por todas essas reflexões levantadas pela obra, é tão intrigante ver esses embates entre os personagens. Porque nenhum deles quer admitir o que sente, porque nenhum deles consegue dizer o que teme ou o que acredita. Porque isso fere a conduta, fere o rótulo que lhes foi dado. Não apenas do aluno perfeito, mas da mãe que não quer admitir as falhas que destruiriam anos de confiança. Da professora preta que precisa provar, mais do que todo mundo, que merece estar onde está. A existência deles se torna um ato político, quando, historicamente, estão ocupando um espaço que por anos lhes foi negado. Esses espaços foram alterados e eles são a representação dessa mudança.

NOTA: 8,5

  • País de origem: EUA
    Ano: 2019
    Duração: 109 minutos
    Distribuidor: –
    Diretor: Julius Onah
    Roteiro: Julius Onah, J.C. Lee
    Elenco: Kelvin Harrison Jr., Octavia Spencer, Naomi Watts, Tim Roth