Crítica: Luca

Se camuflando para viver em sociedade

Os filmes da Pixar possuem um certo poder. Mesmo quando assumem a simplicidade da trama, conseguem extrair algo grande dali e transborda. Com “Luca” não é diferente. É preciso ressaltar, porém, que como qualquer obra de arte, cada pessoa vai extrair e interpretar algo diferente dali. A forma como esta nova animação vai te tocar vai depender de sua bagagem emocional, de suas próprias experiências. Encarar a trama como uma analogia à homossexualidade é um caminho aceitável, assim como qualquer outra linha de interpretação. Mas é assim que eu a vejo e é com este olhar que a obra me tocou, e me tocou profundamente.

Luca é um dos personagens mais fofos da Pixar. Ele é uma criatura marinha que desde pequeno aprendeu a ficar longe da superfície e dos “monstros terráqueos”. Mas como toda criança, ele tem sede por ir além, por descobrir esse universo que não se pode chegar. É com essa curiosidade que seu caminho cruza com o de Alberto, um jovem que arriscou a viver na terra ao perceber que, ao atravessar o mar, ganhava a fisionomia de um humano. Esta amizade dá início a um sonho e um novo plano de vida: se passar por um garoto como todos os outros e ganhar dinheiro para comprar uma Vespa e fugir para bem longe dali.

Roteirizada pelo escritor Jesse Andrews, de “Eu, Você e a Garota Que Vai Morrer”, a obra explora pouco os costumes do local onde ocorre a trama, focando mais na bela trajetória dos personagens, do qual narra com muita doçura. Ainda que seja, visualmente, uma das produções menos inventivas do estúdio, eles alcançam um nível admirável de texturas e cores. É mais um belo trabalho, que cativa e encanta. Os coadjuvantes são bem divertidos também, como Giulia e os pais de Luca. Perde um pouco com a presença do vilão, que quase nunca entrega um bom momento.

A Vespa é símbolo de liberdade e é esta liberdade que os personagens buscam, longe dessas pessoas que lhe dizem o que são e para onde vão. É sutilmente comovente este medo da mãe, que teme, não por saber quem é Luca, mas por saber como o mundo lá fora o vê e, consequentemente, o rejeita. O protagonista, por sua vez, encara tudo com inocência e vê a vida com um entusiasmo inspirador. Ele vai viver como um garoto comum, se camuflando na multidão, apagando sua própria identidade. Em um dos momentos mais fortes do filme, a trama nos leva a revisitar um lugar de dor. Este lugar no passado quando tentamos com tanta garra nos igualar aos demais que passamos a acreditar e ver os nossos iguais com diferença. O poder desta nova animação da Pixar é usar de uma ideia tão simples para construir uma metáfora brilhante sobre homoafetividade. Esta liberdade que os dois garotos buscam não está na fuga, está neste solo em que pisam, está em viver como monstros marinhos e serem aceitos como tal. Sem medo, sem rejeição e sem essas tantas barreiras impostas que os impedem de ser como todos os outros.

“Você me tirou daquela ilha. Eu estou bem”.

“Luca” é sobre aceitação, respeito e entender que tudo bem ser diferente dos outros. É uma mensagem muito necessária e que pode trazer um impacto muito positivo para as crianças, além de dialogar com muitos adultos que enfrentaram essas tantas lutas na infância. O filme nos lembra que nem todas as pessoas vão nos aceitar. Acaba que sendo uma missão, então, identificar aquelas que vão e nos certificar de que sempre estaremos cercados por elas.

NOTA: 9,0

País de origem: EUA
Ano: 2021
Disponível: Disney Plus
Duração: 101 minutos
Diretor: Enrico Casarosa
Roteiro: Jesse Andrews
Elenco: Jacob Tremblay, Jack Dylan Grazer, Maya Rudolph

Crítica: A Minha Vida Com John F. Donovan

Tudo aquilo que não se revela

Primeiro filme de Xavier Dolan (Mommy) em língua inglesa, “A Minha Vida com John F. Donovan” foi o grande fiasco na carreira do diretor canadense, que não conseguiu nem mesmo um lançamento nos Estados Unidos. Havia uma expectativa muito alta quanto a este seu trabalho que reunia um elenco poderoso de Hollywood, mas nem mesmo isso o salvou. Problemas na pós-produção, críticas pesadas no Festival de Toronto onde teve sua exibição e Jessica Chastain eliminada no corte final. A bomba era anunciada a cada nova notícia e mesmo assim resolvi arriscar pelo simples prazer de consumir mais um produto do cineasta (e curiosidade diante de tudo isso). Para minha grande surpresa, estranhamente, gostei do que vi. Senti algo muito forte e especial, mesmo diante de suas falhas, de seus constantes excessos.

Assim como todos os trabalhos do diretor, este retrata um momento muito íntimo de sua vida, logo que, quando criança, nutria uma admiração muito grande por Leonardo Dicaprio e chegou a mandar uma carta para ele aos 8 anos de idade. Este pequeno evento o inspirou a escrever e dirigir “A Minha Vida Com John F. Donovan”, que narra a história de Rupert (Jacob Tremblay), um pequeno garoto que troca correspondências com um grande astro de Hollywood – o John do título -, aqui interpretado por Kit Harington. Logo no começo, porém, é anunciado a morte do ator e são através dessas cartas escritas para seu fã que o filme investiga a ascensão e solidão deste misterioso homem.

John é o retrato desses jovens atores que lutam por crescer em Hollywood, que passam a ter suas vidas controladas pela mídia e a sofrer as consequências da fama. Há algo de misterioso nesses ícones, um fascínio por descobrir o que não se revela, por ver o que há além dos holofotes. O filme, então, invade essa privacidade a fim de entender este objeto de desejo. A intimidade, os segredos, o que o torna tão frágil. É interessante, ainda assim, como no fim das contas, John não deixa de ser um enigma, um fantasma. Conhecemos sua versão pelo ponto de vista de outra pessoa. Conhecemos suas partes. O filho que não se conecta com a mãe, a história de amor forjada, a homossexualidade aprisionada. Mas não conhecemos sua verdade, sua mais completa essência. Em um dos instantes mais belos, a mãe o assiste cantar ao lado do irmão deitado em uma banheira e seus olhares se encontram. A câmera fixa naquele olhar puro e tão distante, tão vazio. O filme desperta em nós este fascínio de tentar desvendá-lo e nos faz refletir sobre tantos casos obscuros de atores jovens que se foram e nunca foram compreendidos.

Há algo na presença de Kit Harington que me encanta. É irônico sua escalação, visto que assim como John, ele nunca foi visto de forma séria por Hollywood, apenas um rosto bonito sem talento. Ele consegue transmitir essas inseguranças do personagem e este receio que tem por viver tantas mentiras. É bom revisitar esses temas tão recorrentes de Xavier Dolan e a sensibilidade com que ele retrata a homossexualidade em seus filmes. É interessante notar como, mesmo em um produto mais comercial, ele deixa muito visível seu toque pessoal, seja pela construção dos personagens, na forma com que captura diálogos verborrágicos ou até mesmo na cafonice visual que expõe tudo isso. A personagem de Susan Sarandon é um exemplo claro disso. É exagerada, dramática e uma criação claramente vinda dele. Mesmo em outro país, com novos cenários, o diretor não perde sua assinatura, seu olhar e sua maneira peculiar de construir seus universos.

Ainda que seja uma produção muito cuidadosa e charmosa sim, “A Minha Vida Com John F. Donovan” não deixa, assim como outros filmes do diretor, de exceder o tom. Dolan tem uma mão pesada e extrapola na breguice em alguns momentos, diminuindo o valor de seu produto que poderia ter mais impacto pela sutileza. A cena do abraço entre Rupert e sua mãe ao som de “Stand By Me” é um assombroso equívoco. É forçado e se distancia do resto que ele construiu ali. No entanto, há algo de cafona em Dolan que tem seu brilho, que funciona, porque ele prova não ter receio disso. A maneira como ele insere as canções, não é apenas um acalento para alma dos que nasceram, assim como ele, na década de 90, mas uma prova dessa coragem. Brega sim, mas divertida. Digo isso porque não há nada mais apelativo que finalizar seu produto com “Bitter Sweet Symphony“. É um golpe sujo que funciona, porque vem dele e, querendo ou não, me fez terminar de vê-lo com um sorriso no rosto e olhos lacrimejados.

Uma das maiores armas de Dolan aqui é seu poderoso elenco. Mesmo sem Chastain, é muito bom ver todos em cena. Kathy Bates e Sarandon, mesmo que menores, estão fantásticas. Natalie Portman não tem muito o que fazer com sua fraca personagem, enquanto que Jacob Tremblay surge irritante com seu protagonista verborrágico. Um dos melhores instantes, porém, além da presença de Harington, é ver Thandie Newton e Ben Schnetzer dividindo a cena. Há algo de muito natural e especial entre os dois estranhos que narram toda a história. Ben, que vive o Rupert mais velho, nos revela esse personagem que se moldou pelas palavras de seu grande admirador. É belo e poético, então, ao final nos darmos conta de que ele criança não teve acesso a última carta deixada por John que, curiosamente, a única vez que o roteiro expõe suas próprias palavras é pela voz de outra pessoa. Seu último suspiro traz esperança mas uma melancolia que talvez impedisse Rupert de seguir seus sonhos, seus passos. Seus próprios passos, enfim. Sentado na garupa de uma moto, ao som de The Verve, sem medo de ser quem é, livre dos julgamentos, livre da prisão que a mesma mídia construiu sobre John F. Donovan.

NOTA: 8,5

  • País de origem: EUA, Canadá
    Ano: 2018
    Título original: The Death and Life of John F. Donovan
    Duração: 127 minutos
    Distribuidor: –
    Diretor: Xavier Dolan
    Roteiro: Xavier Dolan
    Elenco: Kit Harington, Jacob Tremblay, Ben Schnetzer, Natalie Portman, Thandie Newton, Chris Zylka, Susan Sarandon, Kathy Bates, Michael Gambon, Sarah Gadon

Crítica: O Livro de Henry

Quando a indiferença é o grande vilão

O diretor Colin Trevorrow começou sua empreitada no cinema com o singelo e independente “Sem Segurança Nenhuma” (2012). Um primeiro passo interessante de quem, nitidamente, tinha muito o que dizer. Seu sucesso veio rápido e logo tomou frente da sequência de “Jurassic World” (2015). Distante do blockbuster, “O Livro de Henry” é uma obra menor, quase como um retorno às origens, mas ainda assim de boas ideias.

O filme é, praticamente, dividido em duas partes. Separadas por um evento desolador e que transforma a vida de seus personagens. É curioso porque no começo não compreendemos aonde a trama pretende chegar ou o que tudo aquilo pretende nos dizer. Quando a reviravolta chega, ao mesmo tempo que nos surpreende por levar o filme para uma direção não prevista, também traz sentido à obra. O lado ruim disso é que a primeira parte é melhor, perdendo o fôlego ao seu decorrer, mesmo que entregue um bom final. Outro ponto negativo é que quando o longa revela suas verdadeiras intenções, acaba prometendo um desfecho grandioso que nunca chega, suas ações são belas mas são finalizadas com muita simplicidade.

“- Violência não é a pior coisa no mundo.
– O que é, então?
– Apatia”

No filme, Susan (Naomi Watts) é mãe solteira de duas crianças, viciada em vídeo games e que conta com a ajuda do filho mais velho, Henry (Jaeden Lieberher), para cuidar das burocracias da casa. Ele, por sua vez, é uma criança dotada. Um pequeno gênio que usa seu tempo livre para algumas invenções, além de ser o pilar maduro que a família tanto precisa. Esta estrutura perfeita, porém, é abalada quando ele é diagnosticado com um tumor. Antes que algo de pior aconteça, Henry decide colocar sua última invenção em prática, escrever um livro para salvar sua vizinha (Maddie Ziegler) dos abusos de seu padrasto (Dean Norris).

Acima de qualquer coisa – ou de qualquer defeito que a obra venha a apresentar – existe algo em “O Livro de Henry” muito forte, algo especial que o torna, de certa forma, único. Há uma comoção presente nas cenas que faz com que cada um desses instantes sejam doces e sutilmente delicados. Me emocionei em diversos momentos, até mesmo nos mais simples e corriqueiros. O texto é inspirado e encanta por esta beleza que traz a seu universo tão peculiar. E nestes pequenos detalhes, percebemos suas boas intenções e como ele conversa tão bem com os dias de hoje. Nos dias em que pessoas são abusadas e sofrem caladas, nos dias em que vítimas e abusadores vivem ao nosso redor, estão diante de nossos olhos. Nos dias que a crueldade nos cerca e que acaba sendo mais fácil dizer um “deixa para lá, não é nossa vida”. É doloroso quando Henry, uma criança, compreende que está em suas mãos salvar o mundo e não mais viver nesta desesperadora indiferença que tanto vê nos outros.

A presença de Naomi Watts é fantástica, emociona e convence na pele desta mulher tão envolvida com seus filhos. O elenco mirim é o grande destaque da obra, onde tanto Jaeden Lieberher e Jacob Tremblay (por que tão fofo?) surpreendem em cena, entregando atuações incrivelmente sólidas. Há uma interessante surpresa aqui, a performance de Maddie Ziegler, conhecida por interpretar as canções de Sia em seus cliples, surge contida, mas entrega uma sequência poderosa onde dança e diz muito com seu silêncio e seus movimentos. Outro acerto é a belíssima trilha sonora composta por Michael Giacchino. O fim, como disse anteriormente, ainda que emocione, deixa um pouco a desejar, no entanto, no geral, se trata de um filme adorável, sensível e bastante tocante – sim, preparem os lenços! -, que nos pega de surpresa com seu desenvolver e suas boas reviravoltas.

NOTA: 7,5

  • País de origem: EUA
    Ano: 2017
    Título original: The Book of Henry
    Duração: 105 minutos
    Distribuidor: –
    Diretor: Colin Trevorrow
    Roteiro: Gregg Hurwitz
    Elenco: Naomi Watts, Jacob Tremblay, Jaeden Lieberher, Dean Norris, Sarah Silverman, Lee Pace, Maddie Ziegler