Crítica | Não! Não Olhe!

As aleatoriedades trágicas da vida

Jordan Peele segue sendo um dos raros cineastas atuais a movimentar uma multidão para uma ideia original. Sim, ele tem uma mente brilhante e facilmente nos faz ter interesse sobre suas novas criações. “Nope” é mais uma prova de que “Corra!” não foi um acidente de percurso e o cara sabe exatamente onde está indo. É um trabalho maduro, de um diretor ainda em seu auge e nos oferecendo uma experiência sem igual. Aquele tipo de filme que, além de nos causar fascínio diante de seus misteriosos símbolos, também nos empolga nesse cinema eletrizante, bom demais de ver em uma tela grande.

Mesmo que o diretor, claramente, tenha fortes inspirações em Spielberg, ele sabe como conduzir suas referências para algo definitivamente novo e único. Seja quando constrói incrivelmente a tensão, seja quando abraça a aventura pura. A forma como Peele vai nos introduzindo a seu universo – tão mágico e peculiar – é fascinante. Ele sabe como plantar aquela semente de que algo estranho está interrompendo a normalidade e nos mantém atentos a qualquer movimento em falso, curiosos sobre onde pretende chegar. Dessa vez, o palco para o terror está nas alturas e é no céu que o medo habita.

Não existe palavra que defina um milagre ruim. Mas eles existem e é esse o fio condutor de “Nope”. É através de uma aleatoriedade absurda que dois irmãos perdem o pai, morto por uma chuva de objetos. Emerald (Keke Palmer) e OJ (Daniel Kaluuya) precisam continuar cuidando do rancho herdado, treinando cavalos no interior da Califórnia. Quando pessoas passam a desaparecer e uma série de acontecimentos estranhos passam a rondar o local, eles decidem gravar algo que prove a ameaça que acreditam estar vindo do céu e essa provável invasão alienígena. É eles indo atrás de fazer parte da história, aquela do qual seus ancestrais foram apagados.

Não muito longe dos protagonistas, está Jupe (Steven Yeun), um ex-astro mirim que teve sua vida artística marcada por uma tragédia. Existe uma conexão entre esses personagens que, de certa forma, vivem suas vidas pacatas após terem sido descartados. Todos eles alimentaram a indústria do entretenimento, mas como tudo dentro da mídia faminta, perderam o valor logo o show principal. “Eu jogarei imundície sobre você, e a tratarei com desprezo; farei de você um espetáculo.” Jordan Peele desenha, através de seus simbolismos, essa espetacularização da dor e a midiatização do sofrimento. “Aqueles de fora” são os observadores, aqueles que se alimentam de uma tragédia, sugando o que é possível e descartando o que resta. Não é à toa que a principal arma aqui é a câmera e tudo aquilo que registra.

“Nope” permite muitas leituras e, como dentro de qualquer obra de arte, todas elas são possíveis. Nada precisa ter um significado exato, mas é fato que o filme vai deixando lacunas que deixam nosso cérebro fritando. E ao meu ver, isso só o enriquece, porque ele não acaba quando termina e se mantém vivo mesmo após os créditos finais. E não é apenas por essas possíveis interpretações que o novo trabalho de Peele funciona. Funciona, principalmente, porque é muito bem feito, porque encanta e diverte um bocado. O roteiro é ótimo e encontra, diferente de outros textos do cineasta, equilíbrio entre comédia e tensão. É brilhante como o filme não perde a força mesmo quando aquilo que é mistério ganha rosto. Além disso, a relação entre os personagens torna a experiência ainda mais interessante. É belo quando temos esses dois irmãos que, diante de uma tragédia que não se pode olhar para cima, encontram no olhar do outro a força para se manterem firmes. Vale citar, o trabalho absurdo de som que é feito aqui e a belíssima trilha sonora assinada por Michael Abels. Tudo isso torna a obra um entretenimento formidável.

Nem tudo em “Nope” precisa fazer sentido e não entender algo não torna sua experiência menos fascinante, muito pelo contrário. Inclusive, aquele sapato flutuante me soa como uma baita provocação do cineasta. Que não só vem pra dizer que nem todos os elementos precisam ter uma resposta como para somar nesse seu discurso de que a vida é feita dessas aleatoriedades absurdas. Milagres ruins acontecem e por mais que queiramos uma justificativa, nem tudo tem uma razão para ser. Aconteceu porque aconteceu. Simples assim. Como uma moeda que atravessa uma cabeça, um macaco que tem um dia de fúria ou um sapato que recusa a gravidade.

NOTA: 9,0

País de origem: EUA, Canadá
Ano: 2022
Título original: Nope
Duração: 130 minutos
Disponível: Cinema
Diretor: Jordan Peele
Roteiro: Jordan Peele
Elenco: Keke Palmer, Daniel Kaluuya, Brandon Perea, Steven Yeun

Crítica: Desculpe Te Incomodar

A voz do homem branco

Crítica mordaz ao capitalismo, “Desculpe Te Incomodar” seria cômico se não fosse tão triste. Ainda que nos faça rir de desespero diante das situações que narra, também nos deixa pensativos sobre essas relações que traçamos com a realidade. O diretor e roteirista estreante Boots Riley desenvolve uma obra única, peculiar e mesmo que preze pela estranheza, nos faz conectar com essas situações e dilemas tão comuns da vida adulta, acertando ao transformar essa comédia em um intrigante terror distópico. É um caminho arriscado mas que funciona perfeitamente no seu brilhante texto. Um filme provocativo e essencial.

Lakeith Steinfeld está ótimo na pele de Cassius, um cara comum que mora em uma garagem e não vê muitas perspectivas sobre vencer na vida. Até que ele consegue um emprego como operador de telemarketing em uma empresa sombria e começa a se destacar pelo seu dom em vendas e por saber falar com a voz de um homem branco. O grande conflito nasce quando um grupo de funcionários decide reivindicar melhorias no trabalho e, pelo receio de perder a oportunidade de crescimento profissional, Cassius vira as costas para a luta de seus iguais.

Eles queriam que Cassius fosse a voz da revolução, mas ele é bom demais desenvolvendo a voz dos brancos. O protagonista literalmente desenvolve esse poder, pois somente assim poderia vencer sendo um homem negro. Ele é seduzido para estar no topo da cadeia alimentar, se vendendo para ter, iludido por conquistar tudo o que jamais teria, seguindo exatamente o script. Sendo como todos os outros, querendo possuir o que todos buscam. É muito rico esse conflito que se desenha, pois por mais incômodo que seja as escolhas do personagem, o compreendemos, faz sentido diante de toda sua trajetória. E, de certa forma, vibramos para que ele finalmente se encontre.

Com claras referências ao cinema de Michel Gondry, a obra traz uma arquitetura lúdica, de efeitos práticos e uma narrativa surreal, rapidamente nos remetendo a filmes como “A Espuma dos Dias” e “Rebobine, Por Favor”. Exige um nível de abstração grande do público, mas se permitir levar pela sua bizarrice, a experiência pode ser extasiante. Diante de suas criativas invenções e uma montagem ágil, a obra flui como um sonho esquisito, onde nem tudo possui uma sequência lógica. Diverte e nos faz ter a certeza de que estamos diante de algo muito novo e único. Alguns instantes são impagáveis como a participação de Cassius em um programa de TV ou quando um grupo de brancos pede para ele cantar rap. Sim, é tudo assustador nesse nível.

“Desculpe Te Incomodar” vai ganhando tons cada vez mais obscuros. Surpreende e termina de forma brilhante, acentuando suas belas críticas. É uma obra poderosa, que nos deixa reflexivos diante de suas fantasias, diante de suas indagações. O texto revela essa escravidão que se mantém presente mas com novas nomenclaturas, dentro dessas corporações que vendem discursos inspiradores sobre time e dedicação quando visam apenas a exploração e lucro. Nesse sistema, todos estamos no andar de baixo, seguindo ordens e produzindo as conquistas daqueles que já venceram.

NOTA: 9,5

País de origem: EUA
Ano: 2018
Título original: Sorry To Bother You
Disponível: Telecine Play
Duração: 105 minutos
Diretor: Boots Riley
Roteiro: Boots Riley
Elenco: Lakeith Stanfield, Tessa Thompson, Armie Hammer, Steven Yeun, Danny Glover

Crítica: Minari

Florescendo em nova terra

O diretor Lee Isaac Chung trouxe à “Minari” muito de sua vida que, de origem coreana, precisou se mudar aos Estados Unidos na infância. É nítido o quão pessoal são os relatos narrados. É íntimo, honesto e escrito por alguém que tem muito carinho pela própria jornada. Na trama, o pai Jacob (Steven Yeun, indicado ao Oscar pelo papel), é um imigrante coreano que deseja alcançar o sonho americano. Na intenção de dar início a uma fazenda em solo fértil, ele traz toda a família, que precisa se adaptar ao novo país.

O grande ponto de ruptura acaba sendo com a chegada da avó, que vem para ajudar no cuidado com os dois filhos pequenos. A atriz Yuh-Jung Youn é fantástica e constrói uma personagem adorável em cena. Sua relação com o pequeno David é o ponto alto do filme. É divertido e gostoso de acompanhar, principalmente porque o ator Alan Kim é a coisa mais fofa do universo. Difícil esconder o sorriso quando os dois estão em cena.

Com um tom naturalista, Lee Isaac Chung constrói uma obra agradável e calorosa. Um recorte na vida de uma família que luta para se manter unida mesmo diante das dificuldades. Neste sentido, é interessante o uso da planta Minari, que nesta habilidade de germinar em qualquer solo, diz muito sobre os personagens e neste processo que enfrentam de adaptação, de ter que recomeçar em uma nova terra.

“Minari” é feito para encantar e tudo é muito articulado para isso. As paisagens, a trilha, tudo soa como uma jornada contemplativa. Temos aqui uma obra doce, mas que não assume muitos riscos. É tão sutil, mas tão sutil, que acaba sendo difícil criar algum envolvimento com aquilo que narra. É bonito e leve, mas não nos atinge. É aquela emoção que fica distante, confortável de acompanhar, mas que pouco se mantém na memória.

NOTA: 7,5

  • País de origem: EUA
    Ano: 2020
    Título original: Minari
    Duração: 106 minutos
    Diretor: Lee Isaac Chung
    Roteiro: Lee Isaac Chung
    Elenco: Alan Kim, Steven Yeun, Yuh-Jung Youn, Will Patton