Crítica: O Livro de Henry

Quando a indiferença é o grande vilão

O diretor Colin Trevorrow começou sua empreitada no cinema com o singelo e independente “Sem Segurança Nenhuma” (2012). Um primeiro passo interessante de quem, nitidamente, tinha muito o que dizer. Seu sucesso veio rápido e logo tomou frente da sequência de “Jurassic World” (2015). Distante do blockbuster, “O Livro de Henry” é uma obra menor, quase como um retorno às origens, mas ainda assim de boas ideias.

O filme é, praticamente, dividido em duas partes. Separadas por um evento desolador e que transforma a vida de seus personagens. É curioso porque no começo não compreendemos aonde a trama pretende chegar ou o que tudo aquilo pretende nos dizer. Quando a reviravolta chega, ao mesmo tempo que nos surpreende por levar o filme para uma direção não prevista, também traz sentido à obra. O lado ruim disso é que a primeira parte é melhor, perdendo o fôlego ao seu decorrer, mesmo que entregue um bom final. Outro ponto negativo é que quando o longa revela suas verdadeiras intenções, acaba prometendo um desfecho grandioso que nunca chega, suas ações são belas mas são finalizadas com muita simplicidade.

“- Violência não é a pior coisa no mundo.
– O que é, então?
– Apatia”

No filme, Susan (Naomi Watts) é mãe solteira de duas crianças, viciada em vídeo games e que conta com a ajuda do filho mais velho, Henry (Jaeden Lieberher), para cuidar das burocracias da casa. Ele, por sua vez, é uma criança dotada. Um pequeno gênio que usa seu tempo livre para algumas invenções, além de ser o pilar maduro que a família tanto precisa. Esta estrutura perfeita, porém, é abalada quando ele é diagnosticado com um tumor. Antes que algo de pior aconteça, Henry decide colocar sua última invenção em prática, escrever um livro para salvar sua vizinha (Maddie Ziegler) dos abusos de seu padrasto (Dean Norris).

Acima de qualquer coisa – ou de qualquer defeito que a obra venha a apresentar – existe algo em “O Livro de Henry” muito forte, algo especial que o torna, de certa forma, único. Há uma comoção presente nas cenas que faz com que cada um desses instantes sejam doces e sutilmente delicados. Me emocionei em diversos momentos, até mesmo nos mais simples e corriqueiros. O texto é inspirado e encanta por esta beleza que traz a seu universo tão peculiar. E nestes pequenos detalhes, percebemos suas boas intenções e como ele conversa tão bem com os dias de hoje. Nos dias em que pessoas são abusadas e sofrem caladas, nos dias em que vítimas e abusadores vivem ao nosso redor, estão diante de nossos olhos. Nos dias que a crueldade nos cerca e que acaba sendo mais fácil dizer um “deixa para lá, não é nossa vida”. É doloroso quando Henry, uma criança, compreende que está em suas mãos salvar o mundo e não mais viver nesta desesperadora indiferença que tanto vê nos outros.

A presença de Naomi Watts é fantástica, emociona e convence na pele desta mulher tão envolvida com seus filhos. O elenco mirim é o grande destaque da obra, onde tanto Jaeden Lieberher e Jacob Tremblay (por que tão fofo?) surpreendem em cena, entregando atuações incrivelmente sólidas. Há uma interessante surpresa aqui, a performance de Maddie Ziegler, conhecida por interpretar as canções de Sia em seus cliples, surge contida, mas entrega uma sequência poderosa onde dança e diz muito com seu silêncio e seus movimentos. Outro acerto é a belíssima trilha sonora composta por Michael Giacchino. O fim, como disse anteriormente, ainda que emocione, deixa um pouco a desejar, no entanto, no geral, se trata de um filme adorável, sensível e bastante tocante – sim, preparem os lenços! -, que nos pega de surpresa com seu desenvolver e suas boas reviravoltas.

NOTA: 7,5

  • País de origem: EUA
    Ano: 2017
    Título original: The Book of Henry
    Duração: 105 minutos
    Distribuidor: –
    Diretor: Colin Trevorrow
    Roteiro: Gregg Hurwitz
    Elenco: Naomi Watts, Jacob Tremblay, Jaeden Lieberher, Dean Norris, Sarah Silverman, Lee Pace, Maddie Ziegler

Critica: Luce

Quando sua existência é um ato político.

Sucesso no Festival de Sundance, onde foi lançado ano passado, “Luce” é uma adaptação da peça teatral de JC Lee, que aqui também assina o roteiro. Através de um interessante thriller psicológico, a obra narra a conflituosa relação entre os quatro personagens centrais. É o tipo de filme que cresce lentamente, que inicia com uma problemática pequena e onde aquela situação simples acaba ganhando proporções cada vez mais assustadoras.

Luce é um jovem preto. Nasceu em uma região de combate na África e foi adotado por um casal norte-americano (Naomi Watts e Tim Roth). Aluno exemplar onde estuda, ele ministra debates, escreve discursos e está sempre distante de polêmicas. No entanto, a única que não o vê com bons olhos é a rigorosa professora Harriet Wilson (Octavia Spencer), que passa a questionar o caráter do bom moço depois de ler uma redação onde ele parece se identificar com uma ideologia violenta. A partir deste instante, os dois travam uma batalha silenciosa, tentando a todo custo manter as aparências e o lugar de respeito que ambos conquistaram.

Em certo momento, alguém questiona: “que homem preto tem o nome de Luce?” O nome, que vem de luz, lhe foi dado para se encaixar em seu novo espaço e apagar de vez seu passado. Viver na América, o lugar onde tudo é possível e sonhos se realizam. Nas aparências, ele vive dessa propaganda e age como modelo de tudo o que deu certo. O filme, então, cava essa superfície e nos convida a entender o que, de fato, há por traz do aluno exemplar. Sem procurar respostas, sabiamente, o roteiro não percorre os caminhos mais fáceis, nos fazendo questionar e a duvidar deste complexo personagem. Seria ele uma vítima de uma perseguição infundada? Seria ele um sociopata em ascensão? A provocação de “Luce” vem justamente disso, de nos fazer pensar tudo aquilo que evitamos. De dizer em voz alta o que fingimos não existir. Nos faz refletir nos tantos rótulos existentes em nossa sociedade e nessa pressão imposta por sermos tudo aquilo que esperam de nós. Não existem apenas santos e monstros, havendo inúmeras camadas entre essas duas divisões.

“Você não é preto. Você é o Luce”. Essa jornada do protagonista e a forma como todos o vêem me faz lembrar de como a América enxergava O.J.Simpson. O homem preto que gostava de musicais e jogava golfe nos fins de semana. Aquele que se encaixava perfeitamente ao moldes dos brancos e sentia orgulho por isso. Era um sinal de vitória, de conquista. Distante de seu mundinho, simultaneamente, ele era o símbolo da representação para a comunidade negra, mesmo que não estivesse com eles em nenhuma batalha, em nenhum momento de dor. Ninguém gostaria de ver Luce como vilão porque isso negaria as apostas. A sociedade precisa de heróis, dos ícones que exaltam o que deu certo.

Desta forma, “Luce” caminha como se uma bomba pudesse explodir a cada instante. A complexidade de cada personagem permite que a trama siga por caminhos imprevisíveis e torne este provocativo embate em uma experiência intensa, reveladora. O elenco de peso alavanca a potência, entregando excelentes atuações de Octavia Spencer, Naomi Watts e da belíssima revelação do jovem Kelvin Harrison Jr. Ele consegue causar empatia, ao mesmo tempo em que nos faz duvidar de suas boas ações. É aquele enigma que fascina, que seduz. A grande força da produção vem justamente de seu roteiro e desta capacidade de extrair de uma premissa tão simples, discursos tão poderosos, impactantes. O diretor Julius Onah concentra seus indivíduos em espaços fechados – assim como no teatro – seja entre as quatro paredes da casa, seja da escola. Os conflitos pulsam neste confinamento e onde todos são obrigados a se confrontar. Apesar dessas tantas qualidades, a obra acaba pecando em sua montagem. Não apenas pelo ritmo lento que pode cansar boa parte do público, como pela quebra de diversos momentos que poderiam causar um clímax mas são insistentemente interditados por uma outra sequência sem o mesmo valor. Impedindo, assim, o crescimento de uma tensão maior.

Por todas essas reflexões levantadas pela obra, é tão intrigante ver esses embates entre os personagens. Porque nenhum deles quer admitir o que sente, porque nenhum deles consegue dizer o que teme ou o que acredita. Porque isso fere a conduta, fere o rótulo que lhes foi dado. Não apenas do aluno perfeito, mas da mãe que não quer admitir as falhas que destruiriam anos de confiança. Da professora preta que precisa provar, mais do que todo mundo, que merece estar onde está. A existência deles se torna um ato político, quando, historicamente, estão ocupando um espaço que por anos lhes foi negado. Esses espaços foram alterados e eles são a representação dessa mudança.

NOTA: 8,5

  • País de origem: EUA
    Ano: 2019
    Duração: 109 minutos
    Distribuidor: –
    Diretor: Julius Onah
    Roteiro: Julius Onah, J.C. Lee
    Elenco: Kelvin Harrison Jr., Octavia Spencer, Naomi Watts, Tim Roth